Da janela do meu canto a vista é toda de morte. Fica defronte um cemitério. Uma senhorinha o visita toda semana. Lá vem ela mais uma vez. Antes da pandemia, vinha sempre com um ramo de flores; agora, com dois. Também carrega papéis, que minha imaginação enxerga como cartas. Qualquer dia a esperarei na entrada, seguirei seus passos, descobrirei para quem as entrega ou lê, conhecerei em qual dos cantos de lá sua vida já está guardada para sempre, à espera. Haverá quem a visite depois?
“Se eu morrer amanhã, o que morre? O que realmente morre, qual força e quantas emanações da essência humana? Muito raramente faço esse tipo de questionamento, mas o mar pergunta, como pergunta o relógio no silêncio absoluto da noite ou o rumor regular do sangue nas veias”, perguntou o poeta Hugo von Hofmannsthal em carta a seu amigo Edgar Karg, datada de 4 de novembro de 1895, publicadas no país pela editora Âyiné com o título As palavras não são deste mundo.
E eu fico cá a ser perguntado pelo cemitério em frente, pelas flores da senhorinha com sua vida regulada pela morte, pelo dia de Finados que se aproxima e sempre me faz escrever aos meus mortos, pela pergunta que fiz a meu falecido compadre pelo WhatsApp e que ficou sendo a última coisa que com ele falei: “Tá vivo?”. Se as palavras não são deste mundo, quando chegar minha hora verei face a face a resposta que por agora só pelo espelho da fé recebo: “e como!”. E eu, estou?
“A maior parte das pessoas não vive na vida, mas na aparência de vida, um tipo de álgebra onde tudo quer dizer alguma coisa, mas nada é de fato.”
Hugo von Hofmannsthal
Semana passada, dirigia pela Rua General Mário Tourinho, aqui de Curitiba, quando a playlist A Máquina do Tempo, feita pelo Spotify com base no meu histórico, trouxe-me músicas que escutávamos. Perdoem, escutamos. Começamos a conversar, eu do lado de cá, ele também. Meu olhar se perdeu no horizonte que aos poucos era tomado pelos tons de verde do Parque Barigui, os mesmos do cemitério em que ele se encontra, perto dali. Onde também me espera meu pai. Tudo emoldurado pelo brilho manso do sol se deitando como um lençol a pousar na cama.
“A maior parte das pessoas não vive na vida, mas na aparência de vida, um tipo de álgebra onde tudo quer dizer alguma coisa, mas nada é de fato. Eu queria sentir o ser das coisas, estar imerso no ser, no sentido real e profundo. O universo inteiro é repleto de sentido, seu significado está na sua forma. A amplitude das montanhas, a vastidão do mar, a escuridão da noite, o olhar dos cavalos, o modo como são feitas nossas mãos, o perfume dos cravos, a planície, as colinas e os vales, as dunas, os abismos, a paisagem vista a partir das montanhas, os declives, a sensação que se tem quando se caminha em um dia muito quente sobre o piso frio de casa, quando se toma um sorvete, ou seja, em todas as inúmeras coisas da vida, em cada coisa, e, em cada uma delas de modo particular, exprime-se algo que não é capaz de ser reproduzido pela palavra, mas que fala a nossa alma.”
Hofmannsthal tinha 20 anos quando escreveu a nossa alma, em meio aos preparativos para cumprir o período de serviço militar, que seu amigo a quem falava estava a prestar. Mas que importa a idade, o tempo, quando se está imerso no ser? As palavras não são deste mundo, mas os poetas são, como Adelia Prado: “A graça da morte, seu desastrado encanto, é por causa da vida”. E vice-versa, ouso acrescentar. O amigo, Edgar, morreu uns dez anos depois, aos 33; Hofmannsthal, aos 55, dois dias depois de um de seus filhos, que se suicidou aos 26. Teria o poeta morrido de morte? Talvez seja a única causa mortis, se pensarmos bem. Morremos de morte, o tempo todo, um tantinho a cada suspiro, um talho maior quando no suspiro seguinte alguém próximo se foi, como se dobrasse na curva da estrada da vida e cá ficamos, para não mais ver (ainda) para onde foi, irá.
Hofmannsthal foi enterrado com o hábito da Venerável Ordem Terceira da Penitência de São Francisco de Assis, hoje chamada Ordem Franciscana Secular. E minha admiração só cresce, dando novo significado às linhas finais da última carta trocada com Edgar na juventude: “Deve existir em nós uma força infinita, uma magia maravilhosa e ilimitada. Caso contrário, não teríamos jamais essas manifestações de pressentimento da existência, essa certeza abençoada de estar sempre cercado de coisas aparentes, essa vaga intuição de que as dores não são totalmente reais. Não as tens também? Muitas vezes estamos ali como alguém diante do mar, tudo que é estático está atrás de nós, para ser deixado para trás e diante dos olhos nada temos além da existência infinita, algo que não somos capazes de compreender totalmente. Vês que podes tornar-se amigo de um ser humano”.
Morremos de morte, o tempo todo, um tantinho a cada suspiro, um talho maior quando no suspiro seguinte alguém próximo se foi
Vejo, poeta, e como vejo. Como a morte também vê. A morte, tornada personagem de uma de suas peças, O louco e a morte, e que a encerra com um pensamento final:
(Que admiráveis
são estas criaturas!
O que não é explicável, interpretam
O que nunca foi escrito, sabem ler,
A tudo o que é confuso, dão sentido,
E sabem ver na eterna escuridão.).
E a senhorinha vem saindo do cemitério. Sem flores, nem cartas, a tudo entregou, como a vida, mantida de empréstimo. Talvez me sorria por detrás da máscara. Por via das dúvidas, sorrio em resposta, enlevado pela canção que agora toca da playlist que criei para meu falecido compadre, que vivo alimentando com as coisas que descubro que sei que amaria, seguindo assim nossas conversas nessa eterna escuridão iluminada de sentido. Vai com Deus, senhorinha, permaneça nEle, meu irmão.
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