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Nunca havia ido ao Rio de Janeiro, nem quis. Culpem as novelas e os noticiários. Estes me deixaram com medo, aquelas me fizeram perguntar, sem palavras, algo assim: “pra que piorar?” Tenho preconceito, portanto. Ou tinha? Porque enfim fui conhecer a chamada “Cidade Maravilhosa” na semana passada.
E o Rio me recepcionou como deveria, como se eu fosse um corpo estranho a ser combatido. Céu encoberto quase o tempo todo, chuvas, até frio. Era claramente um “você não é bem-vindo aqui”. E eu entendi; se eu fosse o Rio, faria o mesmo. E os cariocas pareciam comungar do mesmo desprezo. Copacabana esvaziada, restaurantes e bares nem de longe apinhados como costumam estar.
Deve ter sido consequência do mau tempo, mas achei o Rio menos barulhento do que imaginava. Mais bossa nova do que samba enredo. Aliás, no primeiro passeio pelo calçadão de Ipanema, o inescapável chope e a sensação de algo faltando: a trilha sonora das novelas de Manoel Carlos. É, o Rio teria muito trabalho comigo.
O carioca é uma atração à parte mesmo. Seu jeitão de ser ambíguo, entre um melhor amigo e um estelionatário, cativa
A primeira coisa que fiz foi passear pelo centro histórico. A revitalização da região a deixou caminhável e flanar por centros de cidades é das minhas coisas preferidas. E se “me perder” pelas ruelas a partir da Rua do Ouvidor já tinha valido a pena, almoçar na tradicional Leiteria Mineira, cujo ambiente me devolveu aos restaurantes de minha infância, com um senhor de idade assistindo no YouTube, sem fone, a esquetes de programas antigos do Chico Anysio pelo celular numa mesa próxima... Ah, mermão, aí já era. Almocei sorrindo.
O carioca é uma atração à parte mesmo. Seu jeitão de ser ambíguo, entre um melhor amigo e um estelionatário, cativa. Há uma leveza no ser carioca que faz bem ao próximo, areja a vida, aquieta a desesperança e permite certa paz de espírito. Por outro lado, tem também uma despreocupação que beira a irresponsabilidade, e aí você entende como se pode passar do jeitinho à malandragem muito rapidamente.
No primeiro Uber, o motorista era da zona norte. Não demorou muito e estava falando mal de quem mora na zona sul: “tá cheio nesses prédios aí [passávamos por Copacabana] que passou em qualquer concursinho da prefeitura e alugou apê aqui. Não tem o que comer, mas mora na zona sul. Vários deles descem pra comprar quentinha a deizão que alguns vendem pros motoristas de Uber estacionados. Eu só olho e digo: ‘tu é inquilino, mermão, não é proprietário, não. Eu moro no Méier, mas como picanha’”.
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E rimos, ao que o animou mais ainda a descascar os cariocas da zona sul, que por sua vez consideram que os da norte têm preconceito com eles, achando todos “playboys”, quando não são, não todos. E, de fato, os que conheci não eram nada do que o motorista falou. Pouco importa se inquilinos ou não. Mas, como não tenho condição de arbitrar a questão, salomonicamente arrisco: ambos devem ter razão.
Mas essas generalizações deixam escapar preciosidades. Uma das coisas mais legais do Rio é que cada bairro tem suas características próprias, tanto geográficas quanto de costumes, estilos de vida diferentes. O morador da Tijuca é diferente do da Barra, que por sua vez não é o mesmo do Leblon, que até de Ipanema difere. Pense em Zeca Pagodinho, que mora na Barra, mas tem a alma em Xerém, que fica em Duque de Caxias; e Machado de Assis, o Bruxo do Cosme Velho. Não há apenas diferenças de época.
Aliás, fui ao endereço onde Machado viveu no Cosme Velho, em que escreveu os últimos e melhores romances e viu Carolina, sua amada, falecer. Da casa nada restou, salvo uma placa indicando que seria ali, onde ergueram um prédio e comércios se revezam ocupando o espaço vazio, o que me fez lembrar do famoso poema de Drummond sobre a casa, sobre o bruxo que ali morou: “Em certa casa da Rua Cosme Velho / (que se abre no vazio) / venho visitar-te; e me recebes / na sala trajestada com simplicidade / onde pensamentos idos e vividos / perdem o amarelo / de novo interrogando o céu e a noite”.
Uma das coisas mais legais do Rio é que cada bairro tem suas características próprias, tanto geográficas quanto de costumes, estilos de vida diferentes
E interrogando fiquei diante da placa e da imaginação, pensando na frase final de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que não teria transmitido a ninguém o legado de sua miséria. Mas Machado nos transmitiu. Miséria enigmática, redimida ou profética? Miro o alto, ao Cristo no topo do Corcovado e me dou conta de que a resposta já havia me sido dada.
Antes de ir à casa fui dar o “check” de turista e subi para ver a cidade ao lado do Cristo. Daqueles passeios de turista que não faço nenhuma questão, mas que não dá pra não fazer uma vez na vida. Ventava, estava nublado e o Cristo apareceu de repente na névoa dissipada, de costas para mim, num tamanho surpreendente, mesmo tendo-o visto tantas vezes em fotos e vídeos.
Emocionante, como disse minha esposa. Emoção comungada com as dezenas de pessoas em volta. Ao nosso lado, creio que uma mãe abraçava a filha e dizia: “que Ele acalme teu coração. Que você ache o rumo, que não se perca em tantos ‘por que?’, ‘por que?’, ‘por que?’” A miséria, aquela. A resposta ali, de braços abertos.
O Rio não me recebera como a um corpo estranho. Ao contrário, ele se tornou estranho a si para melhor me receber. Só porque o tempo não estava bom pude caminhar tanto pela cidade, não só na beira da praia
Uma pena que não consegui visitar a igreja de Nossa Senhora da Paz, onde estão os restos mortais do Servo de Deus Guido Schäffer, e aonde, descobri com uma amiga de lá, Renato Russo ia com frequência se confessar. E, se você não entendeu a relação entre essas coisas, muito menos a importância disso, conheça o Cristo Redentor.
Talvez tenha sido ali que me caiu a ficha. O Rio não me recebera como a um corpo estranho. Ao contrário, ele se tornou estranho a si para melhor me receber. Só porque o tempo não estava bom pude caminhar tanto pela cidade, não só na beira da praia. Certamente não conseguiria se o sol estivesse disposto e com calor intenso. Foi porque o Rio me permitiu conhecê-lo como eu gostaria de conhecê-lo que agora posso cantar que ele continua lindo, continua sendo. Obrigado, Cidade Maravilhosa.
Falando em cantar, é claro que também bebi um chope no Garota de Ipanema, o original de cuja varanda Tom e Vinicius avistaram Helô Pinheiro em seu doce balanço a caminho do mar. O bar estava bem vazio por causa da chuva e eu e a minha garota, que não é de Ipanema, brindamos mais uma vez os nossos 20 anos de casados, motivo da viagem, lembrando dos filhos em casa, a quem transmitimos o legado do nosso amor. E é só assim que o mundo inteirinho se enche de graça.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos