Dormia bem, não podia reclamar. Passava das oito horas regulamentares, não raro chegava a dez. Cumpria a mesma rotina, do que também não reclamava. Após o banho, café da manhã com a esposa que invariavelmente contava dos sonhos da noite anterior. Era impressionante a capacidade de superação no absurdo. Já teve de tudo. Até um tapa certa vez levou dormindo porque a estaria traindo no pesadelo. E vá dizer que isto não se podia levar a sério... Já ele, nunca se lembrava dos sonhos. Achava até que não sonhava, o que tornava aquela falação da esposa ainda mais incompreensível.
Levava as crianças ao colégio e ia trabalhar. Sempre assim. Naquele dia, não foi diferente. Até a hora da reunião ordinária. Estava lá, sentado, escutando o diretor esbravejar contra a falta de garra da equipe, que as vendas já não eram as mesmas e patati e patatá. Todo começo de semana era assim. Todo. Escutava pacientemente as críticas pertinentes ou não, quando um estouro dos vidros que separavam a sala do corredor abafou os esbravejos. Cerca de 15 piratas adentraram. Espadas de base fina e grossa lâmina ziguezagueavam por sobre as cabeças. Todos cheiravam mal e a Corote. Alguns com tapa-olho, a maioria de barba, quase todos com gorrinhos vermelhos amarrados atrás da cabeça, salvo um usando um grande chapéu com a tradicional caveira e os ossinhos cruzados abaixo dela.
Araújo estava sem ar, assustadíssimo, sem compreender. Mas não havia reação de mais ninguém. A maioria parecia nem sequer enxergar o que acontecia. O pirata de chapéu, certamente o capitão, gritava, mas não conseguia discernir as palavras porque a aparente coragem do chefe era mais espantosa ainda, totalmente indiferente ao fato de o sujeito levantar sua espada e começar a descer em direção ao seu pescoço. Eis que Marcelo, seu único amigo na empresa, subitamente levantou-se, vestido como um gladiador romano (ele estava assim já?), portando nas mãos uma enorme espada, agindo em tempo e evitando o golpe mortal. Araújo, aproveitando da confusão, fugiu, não sem antes contemplar Marcelo, vibrando como nunca, enfrentando os 15 piratas sozinho. Marcelo lhe piscou? Imaginou ter visto. Saiu correndo, desistindo de chamar os demais, que simplesmente seguiam fazendo anotações em suas cadernetas enquanto o chefe continuava falando.
Após uma longa tragada no cigarro cuja baforada cobriu a sala de uma penumbra cinzenta e um cheiro de madeira envelhecida, o homem disse: “Você pode tentar fugir... e vai tentar... mas no fundo já sabe que nós o pegamos...”
Entrou atabalhoado na sua sala. As três linhas telefônicas do escritório estavam ocupadas. Ele se tranquilizou. Certamente, os demais funcionários já haviam chamado a polícia. Era hora de ir embora. Atrapalhado e nervoso, derrubou uma pilha de pastas que estava em cima da mesa. Começou a recolhê-las do chão quando, de repente, escutou a porta da sala fechando lentamente. O rangido preguiçoso da dobradiça demorou a terminar. Aterrorizado, só conseguia olhar para os sapatos de quem entrou. Eram impecáveis. Sapatos de couro negro, extremamente limpos e polidos. Formava a parte frontal, larga nos dedos, um pequeno espelho de abóbada de onde Araujo pôde contemplar o próprio rosto. Não se reconheceu. Aos poucos levantou os olhos e descobriu quem era.
Um senhor alto, de cabelos e longa barba branca, vestido num fino terno de risca-de-giz, camisas brancas com listras verticais pretas e gravata bordô, com um pequeno lenço da mesma cor no bolso do coração do paletó. Uma cicatriz na face, um cigarro dourado num canto da boca. O chapéu era igualmente impecável. Mas os olhos é que chamavam a atenção. Eram escuros, olhos de arquivo, daqueles sem chaves cujo dono sabe de cor onde fica cada coisa. E um deles era independente do resto do rosto. Não era vesgo ou algo assim. Os olhos viravam para onde queriam, mas com o homem no absoluto controle dos movimentos.
Araújo se levantou, sem conseguir dizer nada. Tremia? O olhar de ameaça do homem à sua frente parecia aos poucos amansar. Após uma longa tragada no cigarro cuja baforada cobriu a sala de uma penumbra cinzenta e um cheiro de madeira envelhecida, o homem disse: “Você pode tentar fugir... e vai tentar... mas no fundo já sabe que nós o pegamos...” Araújo mal conseguiu ouvir o que o homem disse, pensava numa forma de escapar. Mas aquela era a única porta e, da janela, dez andares o separavam da realidade do chão. Enquanto analisava a falta de opções, o homem inspecionava as pastas com olhar de desprezo. Uma sombra adentrou pela janela, com a ponta da asa de um bicho enorme aparecendo. Não deu tempo de pensar, viu-se arrastado janela afora.
Segundos depois estava sentado no pescoço de um pterodáctilo que voava para longe. Sua mente não respondia mais, petrificado. Conseguiu apenas vislumbrar o homem na janela de sua sala. Parecia sorrir, mas poderia ser mera impressão causada pelo brilho do cigarro dourado. Cinco minutos depois, o bicho pousou calmamente na praça em frente à sua casa. Fez um carinho na cabeça do animal, que grunhiu, balançou-se e voltou aos céus, desaparecendo. Araújo olhou à sua volta. Havia dezenas de pessoas nas ruas do entorno. Nenhuma parecia lhe dar atenção ou demonstrar surpresa. Salvo aqueles dois meninos que jogavam bola no gramado ali perto, boquiabertos, escondendo-se atrás de uma árvore. Araújo acenou e foi para casa.
A volta também possuía um ritual. A leitura dos jornais no celular, sentado no sofá da sala de visita acompanhado de uma cerveja. Brincava com as crianças, ajudava a arrumar a mesa para o jantar e assistia à tevê com a esposa antes de dormir. Mas naquele dia chegou antes da hora. Não havia ninguém em casa. As crianças chegariam da natação com a esposa dali a uma hora. Pegou o celular e foi para a sala de visitas. Não quis a cerveja. Mas preparou um duplo Jack Daniels que tinha comprado por causa daquele filme do Clint Eastwood. Não conseguiu tomar puro e misturou com quatro pedras de gelo e água de coco. Lembrou-se do pai, era o ritual dele, mas com os jornais espalhados pela mesinha de centro da sala. Ele tinha um método para ler? Não sabia. Quis saber. Olhou para o celular com tristeza, fechando os olhos e largando-se no sofá.
Sentiu que o aparelho escorregava das mãos, abriu os olhos e o perdeu. Enquanto procurava nos vãos do sofá, escutou o farfalhar do papel. Virou-se e os cadernos da edição do dia o esperavam. Não se surpreendeu, até esperava. Leu a parte de esportes primeiro, como fazia na adolescência. Há quanto tempo não acompanhava seu time de coração? As partes de Política e Policial simplesmente lhe pareceram fora da realidade. Nunca lia o caderno de Cultura, mas desta vez ficou curioso e foi ver do que se tratava. Terminada a leitura, ficou pensativo. Resolveu tomar novo banho. Quando molhava a cabeça tirando o xampu que escorria pelos olhos, estrondos vindos do lado de fora. Pareciam fogos de artifício, mas eram diferentes.
Lembrou-se dos livros infantis que seu pai costumava dar aos netos de presente. Eram vários, mas Peter Pan lhe chamou a atenção, sem saber bem por quê. Já tinha desistido de tentar entender, na verdade
Vislumbrou, por entre os olhos ensaboados e através da pequena janela que dali dava para a parede lateral do edifício Lúcia Machado de Almeida, enormes galeões espanhóis ao fundo do mar, que parecia revolto. Mar? Densas nuvens negras cobriam a vista, vez por outra, mas não o suficiente para impedir de avistar uma batalha, com tiros de canhões cujo ribombar diminuía à medida que os navios se distanciavam. Terminou o banho sorrindo e quando terminava de se enxugar, adorando o barulhar das gaivotas nervosas em cima das pedras, escutou as crianças chegando em casa. Algo de diferente nelas, mas não sabia dizer o que era.
A esposa preparava o jantar contando seu dia, enquanto ele colocava os pratos na mesa. Terminada a tarefa, não deu chances para que ela soubesse do seu. Passeou pela casa e sentiu falta de livros nas prateleiras cheias de vasos vazios e bricabraques variados. Entrou silenciosamente no quarto das crianças. A mais nova ainda fazia sua lição de casa enquanto o mais velho jogava videogame. Quis jogar com o filho, mas este negou o pedido. Quis ajudar a menina, mas não era necessário. Sem querer, olhou para a única prateleira sem brinquedos. Lembrou-se dos livros infantis que seu pai costumava dar aos netos de presente. Eram vários, mas Peter Pan lhe chamou a atenção, sem saber bem por quê. Já tinha desistido de tentar entender, na verdade.
Sentou-se na cama debaixo do beliche dos meninos e começou a ler a história. O cheiro do livro, então, lhe transportou para a fazenda. Era o mesmo livro que tinha lido, sentado no balanço montado pelo caseiro debaixo da goiabeira. Estava vestido com aquela velha bermuda preferida e com as chinelas de couro que usou até gastarem. O cheiro do bolo de fubá e café fresco que a mãe sempre fazia no fim de tarde lhe abriram o apetite. Olhou para a varanda e viu o pai com seu inseparável chimarrão jogando conversa fora com o caseiro, seu Aloísio. Sentiu, então, duas cabeças se aninhando embaixo de seus braços. Eram os filhos. Pediram que lesse em voz alta. Assim fez. Era raro, mas no jantar quis saber tudo sobre o dia deles. Achou o empadão da esposa extraordinário. Ela se surpreendeu, mas não perguntou. Seguiram conversando, nem lembraram da tevê. Antes de dormir, rezaram com os filhos. Há quanto tempo não faziam isso?
Acordaram. E com eles, a rotina. Depois do longo banho, o café com a esposa e a história do sonho dela contada como sempre. Ele riu, de verdade. Era absurdo, mas fazia sentido. Contou, então, o seu sonho. Os olhos brilhavam na hora de falar da parte da fazenda. “Lembra da propaganda do Neston?” Mas a esposa interrompeu, perguntando se algo havia acontecido. Respondeu-lhe que nada de mais, apenas que, desta vez, lembrava do sonho. Ela achou melhor não entender. Na empolgação, Araújo perdeu a noção do tempo. Em sete anos de empresa, era a primeira vez que estava atrasado para trabalhar. Pediu à esposa que levasse os filhos para a escola; não tinha tempo a perder, não queria ter o salário descontado. Torcia para que Sininho ainda não tivesse saído. Agora, só o pó mágico poderia lhe salvar.
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