Das vantagens de não ter uma coluna diária é conseguir escapar, às vezes, do varejo de aparentes importâncias esquecíveis. Acompanho colegas sofrendo com isso, ainda mais nos dias de hoje em que a feira do dia é sempre política e, como bem disse o Polzonoff, leva ao vício em reatividade, que é a antessala da neurastenia.
Mas minha semana começou com show do Paulinho da Viola, logo, não tem como terminar mal assim. Por cá esteve no domingo a elegância encarnada do samba a dar o alento de tudo, a começar do eterno retorno desse desvario político. Nenhum discurso no palco, nenhuma bandeira levantada, apenas e tão-somente música, homenagens a vários compositores consagrados ou esquecidos e histórias das mais de cinco décadas de sua carreira.
Que alívio, desarmando minhas defesas de reatividade a três gatos pingados usando bonés do MST na plateia, tirando-me também por uma hora e meia desse enorme batalhão que somos nós, paralisados impacientes no sinal fechado da vida, desesperados para correr buscar um lugar no futuro que, na verdade, sumirá na poeira das ruas.
O show não teve nenhum discurso no palco, nenhuma bandeira levantada, apenas e tão-somente música, homenagens a vários compositores consagrados ou esquecidos e histórias das mais de cinco décadas de sua carreira
Com apenas o batucar de uma caixa de fósforos, a suavidade da voz e a humildade da postura, Paulinho absorveu o ambiente do teatro em segundos, cantando Meu mundo é hoje, que não é o aqui e agora do varejo das desimportâncias, “pois sei que além de flores / nada mais vai no caixão”. E lá fomos, como plateia, participar do seu intimismo característico que faz do silêncio um instrumento musical e ensina a solidão a dançar.
A cada história das composições e parcerias, o tempo sambava sem pressa, compassado ao seu coração nada leviano, conservador no melhor sentido da palavra. E não, isso não tem nada de política. Conheça um pouco de sua biografia e verá o quanto sofreu quando, no início da carreira, viu o rock estourar, depois o samba mudar e pouco podia fazer a não ser cantar seu argumento contrário, com a elegância e educação impotentes, mas que, justo por seu mundo ser sempre hoje, restaurou no futuro o que parecia desperdiçado ontem.
Quem diria que Bebadosamba, de 1996, seria o melhor disco brasileiro da década de 90, feito de puro e tradicional samba, sem nada do pagode então na moda, e que deu disco de ouro a Paulinho, sendo seu mais vendido até hoje? E se assistir ao documentário biográfico, Meu Tempo é Hoje, de 2003, verá como o conservador não está apenas no samba, mas também, por exemplo, no guardar carros antigos para restaurá-los.
Verá também como ele se sente tão contemporâneo de Pixinguinha como de Marisa Monte, sem jamais deixar de ser quem é. Paulinho teve seu pai como parte integrante de sua banda e, hoje, tem seu filho. Aparece tocando com ambos no documentário, aliás. É ou não é um conservador, mantendo viva a chama da tradição do samba? E conserva não como um reacionário a reclamar das mudanças ou novidades, não como quem vive do passado, mas como alguém cujo passado vive em si.
Mas, para não dizer que não falei do varejo, há uma história famosa de Paulinho que pode nos ensinar a sobreviver. Trata-se de sua participação na composição do icônico samba Sei lá Mangueira, dando melodia à letra do parceiro Hermínio Bello de Carvalho. O porém é que Paulinho era um portelense famoso, diretor da escola e tudo e, de repente, apareceu como compositor de um samba homenageando a escola de samba rival. Recontou a história no show, de como tentou evitar que a música aparecesse num festival, do medo que sentiu do que o pessoal da Portela pensaria, diria, faria.
Mas nada de grave aconteceu, graças a Deus, pelo contrário, a música lhe serviu de incentivo para compor uma homenagem à sua Portela, e foi daí que nasceu um samba ainda mais icônico e famoso que o feito para a Mangueira: Foi um rio que passou em minha vida, com que encerrou o show. Se você ainda insiste em reduzir tudo à política, eis aí bom exemplo de que fazer melhor que o “adversário” faz mais sentido que tentar destruí-lo.
Paulinho da Viola conserva não como um reacionário a reclamar das mudanças ou novidades, não como quem vive do passado, mas como alguém cujo passado vive em si
Ah, essa imagem do azul... Do azul que abraça o rio passando, também céu e mar, o azul indefinível em que seu coração se deixou levar e nos leva, retornando em várias de suas composições, especialmente no seu último disco de estúdio (até aqui, pelo menos), o já citado e espetacular Bebadosamba, no qual canta: “Timoneiro nunca fui / Que eu não sou de velejar / O leme da minha vida / Deus é quem faz governar / Não sou eu quem me navega / Quem me navega é o mar”. Amém.
Passei a semana mergulhado neste azul sonoro, tentando tornar cada dor de hoje no mundo ressignificado da sua versão no show para Acontece, de Cartola, com sua voz acompanhada apenas de um piano. Daqueles momentos raros de comunhão em que não existe maldade entre nós. Dela vou para Cantando, do disco do ano em que nasci: “Hoje sabemos do sofrimento / Tendo no rosto, no peito e nas mãos uma dor conhecida / Vivemos, estamos vivendo / Lutando pra justificar nossas vidas”. Que resta fazer a não ser acompanhá-lo, cantando: laia, laia...
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