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“O coração humano não consegue mais oferecer um refúgio para a imortalidade. Se o coração é o órgão da recordação e da memória, então, na era digital somos inteiramente desprovidos de coração. Salvamos toneladas de dados e informação, mas sem recordar. Afastamo-nos de toda forma de ‘para sempre’. Renegamos práticas de tempo intensas como fidelidade, responsabilidade, promessa, confiança e compromisso. Provisoriedade, brevidade e inconstância dominam a vida. O próprio tempo se decompõe cada vez mais em uma simples sequência de presentes pontuais. Ele se torna aditivo.”
Tentei tirar férias, daquele jeito que todo não celetista nem servidor público consegue, ou seja, sem conseguir de fato. Você até pausa algumas coisas do trabalho, adia, mas não todas. Continuei escrevendo por aqui, por exemplo.
O descanso acaba sendo sempre parcial, parecendo mais um indulto de natal com tornozeleira na alma do que outra coisa
Gera aquela agitação desgastante de “aproveitar o tempo”. Até para ficar largado numa rede sem fazer nada parece ser uma atividade esportiva, não um deleitar-se no ócio. E olha que, da minha, tinha vista para o mar.
Como de praxe, levei sei lá quantos livros. Dentre eles, vários do filósofo Byung-Chul Han, que me parece ser dos melhores na atualidade a tentar entender a nossa “sociedade do cansaço” (termo que ele cunhou e se popularizou). O trecho acima está no livro Vida Contemplativa, publicado no ano passado pela Vozes. Daqueles que fazem parar a leitura e meditar sobre. Escutando a chuva e o vento espezinhando as ondas no mar fiquei ali a buscar algum para sempre.
É meu drama toda vez que penso sobre o que escrever aqui. Tentar não me afogar inteiramente em algum presente pontual esquecível (quem lembra do “escândalo” da semana passada? Pois é…), sem me render de vez a essa adição de informações constantes que nos tornou adictos em opiniões concordantes com as nossas, vivendo “do estímulo da surpresa” que “nos deixam em uma vertigem de atualidade”, como bem apontou o filósofo.
Mas discordo de Byung sobre sermos desprovidos de coração na era digital. Continuamos providos, ele está onde sempre esteve, nós é que não o acessamos ou desaprendemos a usá-lo. Muitos sequer têm ideia de que o coração é o lar da memória. Quantos não acham que ela ficaria no cérebro?
E como acessamos o coração? Pela recordação, que não é um órgão, mas uma ação, às vezes involuntária, despertada por algum gatilho qualquer, como a Madeleine do protagonista de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust. Uma ação que significa, pela própria etimologia da palavra, “voltar ao coração”. Recordar não é, portanto, uma consulta a arquivos de dados e informações, mas uma travessia do efêmero ao perene, devolvendo-nos ao coração, este refúgio para a imortalidade.
Bem-aventurado seja quem reaprender a se aproximar das formas de “para sempre”. Recordar é uma delas, mas não a única. Às vezes, dar de ombros ao presente pontual preferindo a aparente insignificância factual, sem novidades, dados ou informações, pode bastar e servir como trampolim para o eterno.
Daí porque fico aqui com a recordação da minha contemplação do céu escondido pelo mau humor do verão, feito de garoa e inverno, ondas crispadas pelo vento e azul chumbado do mar. Melhor isso do que o presente pontual de baleia jubarte vítima de olhares humanos, de jornalista se comportando como aviãozinho do tráfico de poder, de terroristas ambientalistas pixando obras de arte e/ou [insira sua notícia preferida do momento].