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“Para mim, música e composição são como cirurgia cardíaca”, respondeu Bono à pergunta de Dave Letterman sobre se tudo que fazia estaria dentro da sua zona de conforto. A resposta faz parte do documentário Bono & The Edge – A Sort Of Homecoming, disponível na Disney+, no qual revisitam a história da banda e apresentam algumas das canções repaginadas e lançadas recentemente no disco quádruplo Songs Of Surrender.
O filme é (bem) melhor que o disco, que, pelo número de audições informadas no Spotify, parece ter pouca gente com paciência de escutar por inteiro, apesar dos recordes de venda. Compreensível, porque é cansativo mesmo. O pretenso intimismo nas versões acústicas parece apenas falta de entusiasmo, como se a dupla estivesse tocando de uma casa de repouso, com balões de oxigênio à mão. O disco, além de tedioso, tem momentos constrangedores, como a versão de Desire, que me recuso a linkar.
O documentário é (bem) melhor que o disco quádrulo Songs of Surrender, que é cansativo mesmo. O pretenso intimismo nas versões acústicas parece apenas falta de entusiasmo, como se a dupla estivesse tocando de uma casa de repouso, com balões de oxigênio à mão
Ou seja, se música e composição são como cirurgia cardíaca, está na hora de colocar um marcapasso, U2! Ainda mais quando descobrimos, pelo filme, o significado maior de Sunday Bloody Sunday, cujo tema da guerra religiosa na Irlanda do Norte serve também como símbolo de um drama religioso-existencial que os integrantes da banda viviam. Sendo parte de um grupo católico, estavam sendo pressionados a largar mão do rock’n roll, da banda. Daí o duplo significado em versos como: “por quanto tempo teremos de cantar esta canção?”, que também queria dizer: “será que seguiremos cantando esta canção?”
O transformar da agonia pela escolha a ser feita em energia criativa dando luz a uma das mais famosas músicas do século 20 é tratado, no documentário, como o parto musical de Bono e The Edge. É precisamente essa energia criadora que parece enfraquecida, quando não ausente, no disco novo, que nem deveria ser considerado como do U2, pois não tem participação da outra metade dos integrantes. Mesmo a recriação de parte da letra de Sunday Bloody Sunday, considerada agora terminada por Bono, por estar colocada numa versão desidratada de toda força, passa despercebida. Não fosse o filme, eu sequer teria notado a mudança da letra, que ficou boa, ainda bem.
Foi essa mesma energia criadora que levou a banda a inovar em 1991, quando lançou Achtung Baby, começando seu turismo pela música eletrônica que durou toda a década de 90. Achtung Baby equilibra na medida o U2 de sempre com a eletroniquice que daria as cartas nos próximos dois discos, já porém exagerando na dose, fazendo a banda se perder numa crise de identidade que, de certa forma, dura até hoje, pois mesmo o retorno ao rock no novo século, mesclado a um pop mais radiofônico, não se compara ao que produziram na década de 80.
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Esse novo disco, mais o filme, revelam esse drama que a pandemia forçou a confrontarem no isolamento forçado dos últimos anos. Há uma busca pela própria identidade, não exatamente perdida, mas deixada nas origens de Dublin que, mais do que um cenário no filme, é a protagonista. Na cena final, quando vão a um pub ao qual havia décadas não retornavam, cantando com várias pessoas Invisible, música da versão estendida do disco Songs Of Inocence, de 2014 (das raras cuja versão repaginada é melhor do que a original), ao mesmo tempo que afirmam ser, na verdade, parte da cidade, sendo todos ali um só, também cantam que seriam mais do que parecem ser, do que conhecemos deles.
Um “mais” que, para ser revelado – ou descoberto por eles mesmos –, parece necessitar de nova cirurgia de coração. Talvez esse disco e filme sejam documentos dessa cirurgia em andamento, capítulos da recriação do U2. Ao menos, espero que sejam. Se for, aí os versos de Invincible serão mais uma profecia do que um desejo: “Finalmente encontrei meu verdadeiro nome / Eu não serei eu, quando você me vir novamente”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos