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E pensar que a nostalgia já foi considerada um transtorno mental. Johannes Hofer, lá por volta de 1688, teria sido o primeiro a tratá-la assim, avaliando alguns de seus pacientes, soldados suíços, que sofriam por não poder voltar para casa, sentindo ansiedade, batimentos cardíacos irregulares e, nos casos mais graves, com dificuldade até para respirar.
Mas é claro que isso não se sustentou, bastava ampliar o leque de pessoas analisadas para se descobrir que a nostalgia é, se colocarmos as coisas no seu devido lugar, a própria condição humana depois da expulsão do Paraíso. Sabe essa tristeza meio vaga, sem objeto, que costumam chamar de melancolia? Ei-la, a nostalgia do Paraíso, o sofrer por não conseguir voltar para casa, que está na própria etimologia da palavra, que vem do grego nostos (voltar para casa) + álgos (dor, sofrimento).
Ainda que você tenha fé na inexistência de seu próprio lar de origem, ele não deixa de ter existido, tem até anjos na portaria impedindo a entrega de isacrifice (a entrega via aplicativo de sacrifícios purgativos – no que me odeio por ter de explicar piada besta). E é essa impossibilidade de voltar para lá a causa desse tédio vital, dessa sensação de falta de sentido na vida, desse medo da morte como quem sabe, sem saber como, que ainda pode ficar pior depois dela.
Quando os filhos passam de fase no jogo da vida, os pais passam também de fase na vida deles
Estou a ler um livro de Orhan Pamuk, chamado O Museu da Inocência, que faz parte de um projeto maior do escritor, que literalmente montou um museu do livro em Istambul com os objetos citados na obra (dentre outros), integrando a experiência da leitura ao da visita ao lugar. O valor e significado dos objetos pessoais dos personagens só se descobre conhecendo sua história, é claro, mas quem visita o museu sem ter lido não fica sem saber ao menos o contexto.
A ideia parece melhor do que a execução, porém, ao menos em relação ao livro (até onde o li, pouco mais da metade), que conta mais a história de um mausoléu da nostalgia que de um museu da inocência. Ou seja, a nostalgia mais naquele sentido do Johannes. No catálogo do lugar há um manifesto do autor com seu propósito: “Nós não precisamos mais de museus que tentam construir narrativas históricas da sociedade, da comunidade, da nação, do Estado, da tribo, da companhia ou da espécie. Nós todos sabemos que o ordinário, que as histórias diárias dos indivíduos são mais ricas, mais humanas e muito mais alegres”.
Ainda espero chegar a essa parte do “muito mais alegres”, mas, mesmo que não tenha no livro, simpatizo demais com a ideia e a iniciativa. Porque a nostalgia é uma espécie de sala de espera da tristeza com duas portas. Uma abre para a depressão; a outra, para uma alegria serena, com a inocência, que perdemos aos poucos na vida, mas não de todo, restaurando-se por instantes, mais viva do que antes até, por estarmos (mais) conscientes do seu valor e significado. Sem abrir essa porta jamais completaremos o processo alquímico que transmuta a inocência em perdão (e compaixão), desmanchando o melhor que podemos ser em uma bricolagem niilista fantasiada de sensatez.
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Andava a pensar nos meus objetos-gatilho, aqueles que transmutam chumbo em ouro, não a perda em morte, quando vivi um desses momentos que jamais esquecemos, com a rara consciência no momento vivido do quão memorável já era enquanto ia sendo, deixando-me profundamente grato. Nesta semana, meu primogênito passou no vestibular. Não achei que fosse me emocionar, confesso, mas errei rude, errei feio. Não foi tanto pela conquista (não era desses cursos que basta fazer o vestibular que passa), tendo testemunhado o esforço pessoal dele durante o ano todo. Foi pela alegria inocente dele, tão viva, tão rica, tão abraçável. No mesmo instante, recuperei a que também senti quando passei no meu vestibular, lá se vão anos demais para contar, agora que parece ainda mais distante com a conquista dele. Quando os filhos passam de fase no jogo da vida, os pais passam também de fase na vida deles.
Daqueles momentos que estão na memória menos pelo que significam e mais pela plenitude do momento vivido. Sabe como? Sabe qual? Estou tentando retê-lo. Enquanto escrevo, escuto uma playlist de músicas do ano em que passei no vestibular. Ao terminar, o algoritmo me devolveu, sabe-se lá por quê, When You Wish Upon a Star, a famosa música do desenho Pinóquio. Sorri, agradecido. Essa música expressa momentos assim, soando triste aos céticos ressentidos, mas serenamente alegre para quem não perdeu a esperança de um dia voltar para casa: “O destino é gentil / Traz para quem ama / A doce realização de / Seu desejo secreto”.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos