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Lembranças incomodam. Em casos traumáticos, a memória pode ser insuportável. Ela fica ali, insistente, martelando o que muitos preferem esquecer: aconteceu mesmo, foi real, pode acontecer de novo. Melhor apagar. É mais fácil viver sem amarras históricas.
No excelente filme Não deixe de lembrar, de Von Donnersmarck, a arte tenta resgatar o horror nazista da anestesia coletiva. Já o governo petista faz o oposto: escolhe virar as costas ao passado para agradar a um grupo militante que transforma terroristas em mártires e chama o esquecimento de diplomacia.
Desde Primo Levi, escrever sobre o Holocausto tornou-se um gênero. Mais que isso: um exercício de vigília. Levi, Elie Wiesel, Imre Kertész, Charlotte Delbo transformaram a dor em linguagem. Não por vaidade literária. Por necessidade moral. Viveram o fundo do poço. E sabiam do risco de esquecê-lo. Escreveram para lembrar do que a civilização é capaz quando se considera pura, iluminada, justa.
Quando um governo abandona a memória dos campos por conveniência, não só desonra os mortos. Junta-se – com carimbo e papel timbrado – ao partido do esquecimento.
O Brasil aderiu à acusação de genocídio contra Israel e, ao mesmo tempo, abandonou uma organização que combate o esquecimento do maior genocídio moderno
Confesso: fiquei curioso, embora não surpreso, com os argumentos por trás da decisão petista de retirar o Brasil da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). Defender o indefensável exige talento. A decisão foi articulada, pensada, coerente com as convicções de quem vê nesse passado um obstáculo ideológico.
Há, sim, preocupações. O Brasil aderiu à acusação de genocídio contra Israel e, ao mesmo tempo, abandonou uma organização que combate o esquecimento do maior genocídio moderno.
A explicação oficial tem um cinismo tecnocrático digno de nota: a adesão à IHRA teria sido “feita de maneira inadequada durante o governo de Jair Bolsonaro”. Ou seja, não é sobre o Holocausto. É sobre o ex-presidente. Uma alergia simbólica a qualquer herança que remeta ao inimigo político.
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E, no mesmo compasso, o Brasil decidiu apoiar a ação movida pela África do Sul contra Israel. Eles acusam o país de genocídio. Diz o Itamaraty: “já não há espaço para ambiguidade moral nem omissão política”.
Ironia rara. Um governo que nunca nomeou os crimes do Hamas, que se curva diante de regimes que apedrejam mulheres, resolveu cobrar coerência moral dos outros.
Eles tratam a memória como se fosse facultativa. Afinal, por que lembrar de 6 milhões de judeus mortos quando o que importa é agradar a ditaduras amigas, sustentar a retórica antissionista e posar de defensor universal dos oprimidos?
Não surpreende. Um governo empenhado em reescrever a história termina por abandonar quem insiste em lembrá-la.
Por que lembrar de 6 milhões de judeus mortos quando o que importa é agradar a ditaduras amigas?
Retirar o Brasil da IHRA é coerente. Coerente com quem chama o Hamas de resistência e relativiza o terror com fraseado de comício. Verdade pesa. E militante prefere camiseta leve. Memória exige responsabilidade. Cobra coerência. Pede maturidade. Sobretudo quando a memória diz respeito ao sofrimento alheio. E sofrimento incomoda. Melhor não lembrar muito. Melhor esquecer. Ou punir.
Essa parece ser a aposta: se ninguém lembra do Holocausto, então Israel perde o direito de existir como resposta histórica a ele. Apaga-se a origem para remover a legitimidade. Um gesto tosco, revanchista. Como se o esquecimento reequilibrasse, à força, o jogo geopolítico da vez.
Há algo de trágico nisso tudo. A mensagem foi dada: genocídios agora são relativos e a história é flexível. Depende de quem conta, e para que se conta. Talvez seja isso mesmo. Talvez seja assim que se constrói um país que pretende avançar em direção... à lama.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




