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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Censura

Tudo muito democrático e muito bem administrado

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Detalhe da espada nas mãos da deusa da justiça, em estátua diante da sede do STF. (Foto: Wallace Martins/STF)

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Toda tirania começa com boas intenções. Como termina, já são outros quinhentos. O fato é que nenhuma censura se anuncia como censura. Nasce da promessa de proteger a sociedade de si mesma. Aqui no Brasil não seria diferente. O Supremo Tribunal Federal decidiu que as plataformas devem remover conteúdos “antidemocráticos” sem ordem judicial. A justificativa não poderia ser diferente: é nobre – evitar o discurso do ódio, impedir golpes, resguardar a democracia. A democracia, agora, precisa pedir autorização para existir. E tudo isso, claro, é muito democrático.

Os defensores da decisão repetem uma ladainha conhecida: “a liberdade de expressão não é absoluta”. Dita com ar de prudência, a frase abre a porta para qualquer arbítrio. Tudo depende de quem define o limite. Se a fronteira é traçada por quem julga, não há mais direito – há administração. É o Estado, mediante a suprema corte, garantindo o direito de decidir quando o cidadão pode falar e o que pode ser dito. O perigo está em acreditar que o poder sabe distinguir, em tempo real, o que é opinião legítima e o que é ameaça ao regime. Mas, óbvio, tudo isso é muito democrático. Muito.

Vemos a substituição do juízo público pelo juízo dos guardiões. A política se converte em perícia técnica. A palavra dos outros é suspeita. O cidadão, um risco potencial

As redes sociais tornaram impossível o controle dos danos. “A mentira se espalha mais rápido que a verdade”, alegam os doutores do bem-estar social. É verdade – e sempre foi. A diferença é que, antes, o erro circulava e o contraditório o corrigia. Agora, por amor à democracia, a correção foi substituída pela exclusão. A lógica é simples: se o debate é arriscado, extingue-se o debate. O tribunal passa a operar como um grande filtro de pensamento, tudo, claro, em nome da democracia.

Há ainda quem insista que o Supremo age por dever moral, para “defender a democracia”. Ninguém que defende isso assumirá que é em nome da tirania. Tudo isso precisa soar sensato, porque apela ao medo – e, neste contexto, o medo costuma parecer racional quando o poder soberano o pronuncia. Nenhum regime autoritário se confessa como tal. Ele sempre começa em nome de um bem superior ou de uma sublime causa: a segurança, a saúde, a estabilidade. A virtude é o disfarce mais eficaz dessa doença.

O que se vê é a substituição do juízo público pelo juízo dos guardiões. A política se converte em perícia técnica. A palavra dos outros é suspeita. O cidadão, um risco potencial. A cada sentença que amplia a autoridade judicial, o Estado se torna mais seguro e a sociedade, mais protegida de si mesma. Há nisso uma ironia trágica: o medo do caos funda uma nova forma de obediência, sempre com aparência de racionalidade.

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É possível imaginar o novo ambiente digital. Diante de um post crítico, o algoritmo hesita: e se um ministro considerar isso “antidemocrático”? A empresa, com medo de multa – um cálculo eficaz da razão econômica –, remove o conteúdo. O cidadão apela, e a plataforma responde com soberano silêncio. O dano está feito. A censura, neste contexto, não precisa de mandado – basta um clique preventivo.

Alguns juristas tentam suavizar o impacto. Alegam que o Supremo apenas “atualizou o Marco Civil” e que as plataformas já dispõem de mecanismos de moderação. Confundem, porém, o que é faculdade privada com dever estatal. O que antes era escolha empresarial passou a ser obrigação jurídica. É o tipo de argumento que transforma o remendo em sistema. O Marco Civil previa um modelo simples: a plataforma só respondia depois de ordem judicial. Era a garantia mínima contra o arbítrio e o filtro do devido processo. A atual suprema corte brasileira inverteu a lógica. Instituiu a responsabilidade direta, sem mediação judicial, e fez da precaução uma forma de liberdade democrática. Primeiro remove-se, depois se discute. A democracia passa a funcionar sob o regime da suspeita – tecnicamente mais eficiente.

Outros perguntam: “Mas e o discurso de ódio? E os ataques às instituições?” A resposta é simples. O direito já prevê punições para esses crimes. O que muda é o método. Antes, o Estado precisava provar o dano e garantir defesa. Agora, ele age por antecipação. É o retorno da velha ideia de “crime de opinião”, disfarçada com um pomposo vocabulário digital.

Nenhum regime que precise punir a palavra para se afirmar pode dizer-se confiante de sua legitimidade

Pessoalmente, defendo o republicanismo. A virtude republicana é a contenção. O poder deve desconfiar de si antes de desconfiar do povo. Um juiz prudente sabe que sua força não está em decidir, mas em saber quando não decidir. Juízes deveriam temer o próprio entusiasmo, pois é dele que nascem os piores equívocos. A tentação de corrigir o mundo sempre acaba com o mundo corrigindo o homem, até aniquilá-lo. Como não é movido pelo entusiasmo de movimentos considerados extremistas e suas paixões mobilizadoras, o gesto parece nobre.

O Supremo, nesse episódio, parece ter cedido à tentação de ser tutor moral da República. O gesto é compreensível – toda instituição teme a desordem. Entretanto, há uma diferença entre preservar a ordem e camuflar o discurso. O primeiro dever do poder é suportar o incômodo da crítica. Nenhum regime que precise punir a palavra para se afirmar pode dizer-se confiante de sua legitimidade. E é, pois, assim que as democracias terminam: não com um grito, mas com o silêncio cúmplice muito bem administrado.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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