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Quando o Estado precisa empregar força militarizada para retomar territórios dominados por facções, não estamos mais diante de um problema de segurança pública. Trata-se de algo que, em termos técnicos, se aproxima de um Conflito Armado Não Internacional – isto é, de uma guerra interna prolongada, entre forças estatais e grupos armados organizados.
Essa classificação, claro, é incômoda. E apenas uma pessoa, em entrevistas recentes, chamou a atenção para o problema: Rodrigo Pimentel, ex-capitão do Bope e especialista em segurança pública. Ele sustentou que o Rio de Janeiro vive uma forma de conflito armado interno e que as operações policiais, nesse contexto, funcionam como operações de imposição da ordem ou da paz. Sua leitura, técnica e sem o filtro das paixões, revela o que o discurso político evita admitir: o Estado brasileiro já enfrenta uma guerra que insiste em negar.
Admitir formalmente que vivemos um Conflito Armado Não Internacional seria reconhecer que o Estado brasileiro perdeu, ao menos em parte, o monopólio da força sobre o território nacional. O governo federal petista, claro, prefere evitar esse tipo de diagnóstico. Reconhecer a guerra seria admitir o fracasso da soberania; negá-la é operar sob ficção legal. O realismo político, porém, não se ocupa de consolos jurídicos e moralismos. Ele descreve o mundo como ele é – e não como gostaríamos que fosse.
O crime organizado no Brasil ultrapassou há muito o estágio da bandidagem. Ele já se comporta como poder paralelo, com hierarquia, disciplina, controle territorial e capacidade de confrontar o Estado
Da minha parte, reconhecer essa trágica realidade não é um gesto autoritário, é um ato de lucidez política. Mesmo a esquerda progressista, tão acostumada a interpretar a violência a partir das categorias sociais, morais e econômicas, precisaria compreender que o crime organizado no Brasil ultrapassou há muito o estágio da bandidagem. Ele já se comporta como poder paralelo, com hierarquia, disciplina, controle territorial e capacidade de confrontar o Estado com capacidade beligerante. Ou seja, ele exerce controle de fato sobre parte do território.
Negar isso, por receio de parecer “belicista” demais e indiferente às questões humanitárias, é ceder ao moralismo idealista e ao pacifismo ingênuo. Enquadrar juridicamente o fenômeno como um Conflito Armado Não Internacional não é militarizar o debate, mas restituir à política o seu princípio de realidade. Somente a partir desse reconhecimento é possível discutir legitimidade do uso da força, direitos humanos e soberania sem cair no sentimentalismo que impede o país de pensar o próprio colapso.
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Como meu leitor de velha data sabe, eu sou católico e tenho uma visão realista da política. E não vejo nisso contradição.
O realismo político, no sentido rigoroso do termo, parte da convicção de que a vida pública política é regida por relações de poder, não por intenções morais. O Estado age para preservar a ordem e a soberania, não para realizar utopias. Essa perspectiva reconhece que o poder, antes de ser um vício, é uma necessidade. Ele não se desculpa por existir. É o instrumento por meio do qual o homem tenta conter a desordem e evitar que o caos devore tudo.
Politicamente, o realista olha o mundo sem véus da esperança. Vê a política como um campo de limitação, de escolhas trágicas, onde a virtude está menos em fazer o bem do que em impedir o pior. No Brasil, a recusa em enxergar a natureza real do conflito que o crime organizado nos impõe é uma forma de covardia intelectual. Fala-se em “violência policial” sem mencionar que há grupos armados com estrutura, comando e domínio territorial. É o vício ideológico de maquiar o poder com eufemismos morais.
No Brasil, a recusa em enxergar a natureza real do conflito que o crime organizado nos impõe é uma forma de covardia intelectual
Meu catolicismo não me afasta desse diagnóstico. Ao contrário, o reforça. A fé não é um refúgio da história, mas o modo mais lúcido de habitá-la. O pecado original é a tradução teológica do que o realismo chama de natureza humana. Ambos reconhecem o limite e a inclinação ao desvio. Por isso, o católico e o realista convergem num ponto decisivo: não há redenção pela política, apenas contenção da ruína. A tarefa do Estado, nesse sentido, é impedir que a desordem perverta o que nos resta; a da fé é lembrar que até essa contenção, neste mundo, é precária e passageira. Não há lugar feliz para a história.
Chamo essa postura de realismo trágico: a compreensão de que o mundo é um campo de imperfeições permanentes, onde a graça ilumina, mas não instaura o paraíso na terra. Ser realista é reconhecer que a política é a administração dessa terra devastada. Ser católico é saber que, mesmo assim, a esperança não é inútil. Afinal, não sou um niilista cínico falando essas coisas do conforto do meu apartamento pequeno burguês. O político teme o caos; o crente teme o inferno. E o perigo está justamente quando as duas coisas se confundem – quando a desordem do mundo começa a se parecer demais com a condenação eterna.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




