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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Religião

Jesus e a teologia performática da libertação

Frei Gilson foi criticado pelo padre Júlio Lancellotti
Centenas de milhares de pessoas madrugam para rezar com frei Gilson, o que levou a indiretas do padre Júlio Lancellotti. (Foto: Daniel Xavier/Canção Nova)

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A leitura comunista de Jesus ignora um dado essencial da fé cristã. Cristo jamais propôs a abolição da propriedade privada ou exigiu redistribuição compulsória de bens. Não pregou a revolução contra os ricos, nem exaltou a pobreza como virtude econômica. Sua crítica ao dinheiro é moral e espiritual. Condena-se a idolatria das riquezas, não as riquezas em si. Sua mensagem central é a conversão pessoal e o anúncio do Reino de Deus, não a transformação política e supressão da sociedade sem classes.

Digo isso porque recentemente o debate entre dois padres católicos reacendeu a discussão. Seria Jesus o primeiro comunista? Tolice, para não dizer heresia. Um dos padres está ligado ao mistério da oração; outro, à pregação da Teologia da Libertação. Refiro-me, obviamente, ao ataque discreto de Júlio Lancellotti ao frei Gilson. Em uma de suas pregações, Lancellotti disse:

“A gente tem de rezar às 4 da manhã, é bonito. Mas depois, quantos vão pegar o metrô pra ir trabalhar, levando a marmita que nesse calor azeda a comida e não tem onde comer. Então a gente tem de rezar sim, mas tem de viver o que reza. Não adianta rezar e depois não servir aos mais pobres, aos fracos e aos pequenos. A gente reza sim, eu vou marcar um terço lá na missão Belém, já que vocês rezam de madrugada também. E saber isso, pode rezar de madrugada, é muito bom, mas quando for 6 horas da manhã, vai levar um café pro irmão de rua. Vai levar um pão pro irmão de rua, que em muitos abrigos, como os da Prefeitura, às 6 horas da manhã os põe todos na rua outra vez. É preciso que a gente seja coerente, a oração nos leva pra Deus, pra gente levar Deus pros irmãos. Senão não adianta, a gente tem de rezar e fazer da oração verdade.”

A oração muda a ordem social do mundo, sua estrutura, mas primeiro deve mudar a ordem interior da miséria existencial, de uma vida deformada pelo pecado

De início, parece não haver problema algum com tais palavras. Afinal, o que poderia ser mais cristão do que unir oração e serviço? Contudo, apesar de bela e aparentemente sensata para um cristão, essas palavras revelam um risco espiritual complicado. Em seu apelo, o padre Lancellotti nada mais faz do que reproduzir o catecismo da Teologia da Libertação. Nesse contexto teológico, a ação social em referência aos pobres assume o papel central da fé cristã. O problema está em esvaziar o mistério da fé. Portanto, a oração corre o risco de tornar-se mera preparação para o engajamento político. As palavras de Lancellotti instrumentalizam o evangelho à ação social, e não à ação social ao evangelho de Cristo.

Aqui, Deus é convidado a atuar como parceiro útil na luta contra injustiças sociais, e a oração, se não produzir resultados sociais imediatos, torna-se vazia.

Ora, de fato, o cristianismo jamais despreza a importância da caridade. Pelo contrário, sempre a exaltou como expressão de fé viva. Porém, o núcleo da fé cristã permanece na relação pessoal e misteriosa com Deus. A oração é precisamente o espaço dessa relação: nela o ser humano reconhece sua dependência absoluta de Deus. Reconhecer Deus em sua soberania incontestável e o mistério da graça que não se mede em resultados práticos sociais imediatos.

Claro que a oração muda a ordem social do mundo, sua estrutura, mas primeiro deve mudar a ordem interior da miséria existencial, de uma vida deformada pelo pecado. Antes de transformar estruturas, destrói orgulhos. Antes de mover sistemas, dobra joelhos. A fé que ora não é alienada – é subversiva espiritualmente. Subverte a lógica do poder, da eficiência, do cálculo. Na oração, o homem não faz, recebe. E isso escandaliza o mundo moderno, viciado em ação e resultado; viciado em exibir virtudes sociais.

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O que Lancellotti parece negligenciar é que a oração, por si só, já constitui uma verdade. Não é apenas “bonita”, é essencial para curar o coração decaído de cada pessoa. A coerência cristã não se mede pela ação social, mas antes pelo reconhecimento humilde da soberania divina. Reduzir a oração à preparação para atos sociais é domesticar o mistério. Deus deixa de ser o Absoluto e passa a ser instrumento eficaz de transformação social.

O perigo na posição defendida por Lancellotti é a inversão espiritual promovida pela Teologia da Libertação: o transcendente cede lugar ao material; o mistério, à eficácia social; Deus, à militância. O cristianismo, contudo, permanece fiel ao reconhecimento do mistério insondável da oração, porque é na oração que reside a verdadeira conversão do coração humano, da qual deriva a caridade que jamais deve ser reduzida à ideologia materialista política.

Jesus não escreveu manifestos. Não organizou revoltas. Não pregou violência revolucionária. Sua mensagem é pessoal. Chama cada um à conversão, à santidade, ao abandono da idolatria do poder e do dinheiro. Ensina que o Reino de Deus é como uma semente: pequena, discreta, silenciosa. Cresce na alma. Fora do espetáculo. O poder do Reino é a humildade. Antítese da força e contrário ao show dessa caridade performática da Teologia (marxista) da Libertação.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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