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Autogolpe é aquele momento em que o poder amplia sua área de domínio e impõe uma reorganização interna favorável ao núcleo dirigente. A versão contemporânea dispensa a estética do ruído, paixões mobilizadores, militantes fardados. Autogolpe não exige tanques nas ruas. Não exige o fechamento de plenários. Não exige a suspensão formal da Constituição. Pelo contrário, protege-se no apelo “constitucional”. Logo, o autogolpe exige apenas uma tecnicidade jurídica treinada para demonstrar que o centro de poder deve operar sem contrapesos democráticos.
É nesse ambiente asséptico que germina nosso atual escárnio. O escárnio aqui não é o deboche vulgar do ditador que ri da plebe. Não é a euforia do corrupto que celebra o saque. Não é a brutalidade do tirano que impõe o silêncio pelo medo. É algo mais sofisticado, sutil, nada barulhento. Aqui, o escárnio é a serenidade do burocrata que chama a própria violação de “procedimento”. Ele surge no hiato entre a realidade observada e a verdade oficial. Nasce quando o torcedor vê o jogo vendido e ouve que a regra foi cumprida. Nasce quando o cidadão vê o tribunal legislando e ouve que a democracia foi salva. O escárnio é a violência que aprendeu a usar a mansidão do vocabulário técnico.
Essa lógica se materializa no duplo movimento recente de Gilmar Mendes. Aparentemente, são casos distantes. Na essência, opera o mesmo método: o escárnio jurídico. No futebol, a validação do cartão manipulado. No Judiciário, a restrição ao impeachment de ministros do STF. O elo invisível está no desprezo pelo microevento. Explico.
Com toda a tecnicidade possível, Gilmar Mendes esterilizou a defesa da cidadania e entregou a chave do controle a um burocrata de gabinete. O sistema imuniza-se contra o povo
O caso Igor Cariús expõe a compreensão fria do esporte. Gilmar concluiu que o cartão encomendado por apostadores não compromete a integridade da partida se o placar permanece estável. A leitura jurídica reduz o jogo a uma aritmética burra e ignora o processo volátil que constitui o futebol. Torcedores sabem: um cartão altera trajetórias. Impõe autocontrole, reorganiza pressões, afeta a distribuição de força, reconstrói táticas. Toda partida de futebol é governada por microeventos. Cada engrenagem participa do ritmo profundo do jogo. Uma partida de futebol não é um bloco estático. É uma montanha acumulada de acasos. Essa é a essência de todo jogo.
Ao retirar o peso moral desses gestos, a decisão converte o atleta em operador financeiro de pequenas condutas. O jogador deixa de competir para fornecer “ocasiões” a apostadores invisíveis. O gramado passa a operar como um balcão. O jogo respira, mas respira ar viciado. O torcedor percebe a falsificação. O bom senso percebe. Todo amante de futebol sente o deslocamento da realidade mesmo quando o placar exibe normalidade. O escárnio reside aí: a fachada da normalidade jurídica que esconde a podridão. Mas, para Gilmar, nada disso importa desde que o placar permaneça preservado.
Se a lei pune apenas a fraude nos fins e ignora a manipulação dos meios, ela decreta a morte da competição real. O jogo abandona o terreno do imponderável e se instala numa coreografia financiada por terceiros. O resultado pode até soar “legítimo”, embora a narrativa inteira esteja contaminada e apodrecida. O que sobra é o teatrinho onde só o dinheiro tem substância. Sinceramente, acredito que o futebol corre o sério risco de assumir a lógica da WWE: disputas roteirizadas, emoção de plástico e a circulação do dinheiro nos bastidores.
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O segundo movimento radicaliza o escárnio. O impeachment não é um mero trâmite funcional; é a trava de segurança da República e, portanto, da cidadania. É o único dispositivo capaz de recordar ao poder sua natureza servil. Sem ele, a autoridade flutua no vácuo. Ao restringir a denúncia à Procuradoria-Geral, Gilmar Mendes expropria esse direito. O ato carrega uma arrogância pedagógica: declara que a sociedade é passional demais para vigiar a corte e que o Senado é incompetente para julgá-la. Com toda a tecnicidade possível, o ministro esteriliza a defesa da cidadania e entrega a chave do controle a um burocrata de gabinete. O sistema imuniza-se contra o povo. Aqui, encerra-se em autarquia perfeita. Onde antes havia um freio republicano, resta o monólogo de uma casta que só responde a si mesma.
Vamos lembrar de algo importante. Em 2016, a Mesa do Senado detinha envergadura política para recusar o cumprimento de uma decisão monocrática. Ela invocava a autonomia constitucional contra a interferência do Judiciário. Havia tensão, mas havia estatura: um poder encarava o outro. Como deve funcionar, aos trancos e barrancos, a balança da república. A nova decisão de Gilmar dissolve essa espinha dorsal. Ao suspender a expressão “a todo cidadão” e impor o filtro exclusivo da PGR, o ministro desarma o Legislativo. O Senado vê suas armas confiscadas por uma liminar. A exigência de quórum qualificado para a mera admissibilidade fecha o caixão da fiscalização. Não houve pacificação; houve rendição por decreto.
O método do escárnio se impõe pela convergência. A instituição que deveria proteger a Constituição e o esporte que vendia o imponderável caem sem o estrondo dos tanques. A queda dispensa paixões, pois o sistema goza de um aparato técnico de autopreservação que o corrói, silenciosamente, a cultura e a república por dentro. Em ambos os casos, a realidade é sacrificada no altar do formalismo: o jogo perde a integridade e o cidadão perde o direito de mandar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




