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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Cristianismo

O silêncio dos mártires esquecidos

A última oração dos mártires cristãos, de Jean-Léon Gérôme
"A última oração dos mártires cristãos", de Jean-Léon Gérôme. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Na manhã de 15 de fevereiro de 2025, 70 corpos foram encontrados em uma igreja protestante em Maiba, perto de Lubero, na República Democrática do Congo. Alguns estavam decapitados – inclusive mulheres, crianças e idosos. Rebeldes do grupo islâmico ADF – que significa, pasmem, Forças Democráticas Aliadas – invadiram a vila dias antes, sequestraram 100 pessoas e, numa marcha forçada, mataram os que não aguentaram ou resistiram. A notícia cortou o silêncio de quem, como eu, lê sobre essas coisas e sente o peso de uma pergunta persistente: por que, ainda, os cristãos?

Não há novidade nisso. Desde que o carpinteiro de Nazaré foi pregado feito trapo na cruz, a fé cristã carrega a sombra do martírio. Os primeiros enfrentaram leões em Roma, apedrejamentos em Jerusalém, espadas em Antioquia. Era o preço de acreditar num reino que não se curva a César. O sangue dos mártires, disse Tertuliano já no século 2.º, tornou-se semente da Igreja. E a semente nunca parou de brotar, mesmo em solo encharcado de sangue.

No reinado do Terror, na Revolução Francesa, foram as carmelitas de Compiègne: 16 freiras subiram ao cadafalso entoando hinos. Recusaram-se a abandonar os votos e desafiaram o horror da guilhotina que a razão cega dos iluministas ergueu contra a fé. Seus corpos foram jogados numa vala comum.

Desde que o carpinteiro de Nazaré foi pregado feito trapo na cruz, a fé cristã carrega a sombra do martírio

Séculos antes, em 303 d.C., Diocleciano ordenou a maior perseguição da história romana. Igrejas queimadas, escrituras destruídas, cristãos forçados a sacrificar aos deuses pagãos ou morrer. Não, não é o Canadá ainda. Ali, de fato, muitos morreram. Em Nicomédia, uma multidão foi trancada numa igreja e incendiada viva – nada muito diferente do que aconteceu em Lubero, cujas fotos embaçadas, para não ferir a sensibilidade contemporânea, circulam nas redes. Aqui, a diferença é o tempo; o roteiro é o mesmo.

Santa Cecília sabia disso. Jovem romana do século 3.º, foi condenada à morte por não renunciar a Cristo. Tentaram sufocá-la num banho escaldante. Fracasso. Tentaram degolá-la. Fracasso. Três golpes de espada, e ela ainda respirava. Durante três dias, agonizou no chão de sua casa – depois transformada em igreja. Quando a encontraram, suas mãos estavam postas em oração. O túmulo de Cecília foi aberto no século 16, e lá estava ela: incorrupta, como se tivesse acabado de adormecer.

Edith Stein também sabia. Filósofa judia convertida ao catolicismo, monja carmelita. Poderia ter fugido da Alemanha nazista. Ficou. Em 1942, foi levada a Auschwitz. Manteve-se serena, consolando as mães, rezando com as crianças. Quando a câmara de gás se abriu, ela entrou sem hesitar. Um corpo a mais, um nome a mais na lista interminável de mártires que o século 20 produziu. Hoje, Stein é conhecida como Santa Teresa Benedita da Cruz. A fé queimar em Auschwitz não era novidade. Nem no gulag de Kolymá, onde padres ortodoxos celebravam missas secretas antes de serem fuzilados pela misericórdia comunista. Nem no México dos Cristeros, onde jovens como José Sánchez del Río morriam gritando “Viva Cristo Rei!”

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E assim seguimos empilhando corpos. Na Armênia de 1915, cristãos foram massacrados pelo Império Otomano. Na União Soviética de Stálin, padres e fiéis lotaram gulags. No Iraque, em 2014, o Estado Islâmico marcou casas cristãs com o “N” de Nazaré antes de expulsar ou matar quem lá estava. Agora, em 2025, Kivu do Norte entra na lista: 70 mortos numa igreja, crianças com mãos atadas. Quem não serviu caiu morto.

Não os conheço, mas os vejo na longa fila de mártires que atravessa esses 2 mil anos de história. O cristianismo não é uma história de vitórias fáceis. É a história de resistência quieta, de gente que morre sem largar o peso misericordioso da cruz.

A força disso não está em templos suntuosos ou exércitos. Está na persistência, na resiliência. Roma caiu, os leões morreram de fome, as guilhotinas enferrujaram. O ADF pode queimar igrejas em Lubero. Os congoleses sabem disso. Carregam a mesma certeza que as carmelitas em 1794, que os armênios murmuraram em 1915, que Santa Cecília sussurrou em sua morte e louvor. A morte não é o fim.

Os 70 corpos numa igreja dizem que o cristianismo não se rende. Nunca se rendeu. Enquanto houver quem creia, haverá quem resista

Não escrevo para chorar as vítimas. Escrevo para lembrar que o martírio não é acidente; é o fio condutor da fé cristã. O mundo grita que a violência vence, que a fé é fraqueza. Lubero responde o contrário. Os 70 corpos numa igreja dizem que o cristianismo não se rende. Nunca se rendeu. Enquanto houver quem creia, haverá quem resista. E enquanto houver resistência, a semente vai brotar – em Maiba, em Kivu, em qualquer canto onde a cruz ainda esteja de pé. É o sangue cristão. É a glória de Cristo na cruz.

E a imprensa brasileira? Silêncio. Nenhuma manchete, nenhuma análise, nenhum escândalo moral; 70 cristãos massacrados não rendem audiência. Alexandre de Moraes está salvando a democracia. Barroso, garantindo o progresso civilizacional. Lula, sendo Lula. Janja, Janja. Se os mártires fossem vítimas de outro grupo, um funkeiro proibido de receber verbas públicas por apologia ao crime, talvez a imprensa estivesse escandalizada. Mas, como são cristãos, silêncio. Morrem ignorados...

Mas não esquecidos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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