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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Qual o limite da comédia?

(Foto: Divulgação)

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Formulei esta pergunta retórica por causa do que aconteceu com o comediante Léo Lins. Digo “retórica” porque não pretendo deixar margens para dúvidas a respeito da minha resposta: não deve, em qualquer mundo possível, haver limites para a comédia. Antes de qualquer coisa, estou pensando em limites no nível jurídico, isto é, usar a força coercitiva da lei para restringir um comediante de fazer as pessoas rirem de si mesmas ou o odiarem por isso.

Sou defensor da liberdade absoluta de expressão como liberdade de se fazer uma piadinha bem suja e ofensiva. Isso não significa que defendo o direito de alguém entrar numa sala cinema lotada e gritar, sem aviso prévio, “bomba!”. A liberdade absoluta de uma piada ofender só é absoluta nos limites do sacrossanto ambiente narrativo da arte. Porque contar piada é fazer arte. Gritar “bomba” dentro da sala do cinema, não. O termo “liberdade absoluta de expressão” deve ser entendido no quadro de referência da arte e do debate de ideias. Ameaçar pessoas por gracejo grotesco não cumpre esses requisitos.

Limitar legalmente a comédia é limitar legalmente a arte. Comédia, boa ou ruim, não é manifestação política, declaração de guerra, nota de repúdio, um ato de legitimação do que ela expressa. Comédia é arte. Piada é comédia. Piada é arte. E Léo Lins é artista. E por ser arte, imita – parodiando Aristóteles – a condição deplorável da vida humana. E só em Estados policialescos e autoritários a arte é controlada por agentes do Estado, que coincidentemente não entendem nada de arte. Quem está autorizado a falar de arte? Qualquer pessoa. Mas dentro de uma discussão acerca da natureza do “gosto”.

Vamos aos fatos. O Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a retirada do especial de comédia Perturbador do humorista Léo Lins do Youtube. Segundo alguns portais de notícia, “o comediante faz piadas com escravidão, perseguição religiosa, minorias, pessoas idosas e com deficiências”.

Léo Lins foi proibido de deixar a cidade de São Paulo por mais de dez dias sem autorização judicial. Ele foi proibido de “manter, transmitir, publicar, divulgar, distribuir, encaminhar ou realizar download de quaisquer arquivos de vídeo, imagem ou texto, com conteúdo depreciativo ou humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem, procedência nacional ou regional, orientação sexual ou de gênero, condição de pessoa com deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer categoria considerada como minoria ou vulnerável". Léo Lins também foi intimado a "comparecer mensalmente em juízo para informar e justificar suas atividades". Fora o fato de que poderá “pagar multa diária de R$ 10 mil em caso de descumprimento das medidas”.

Só em Estados policialescos e autoritários a arte é controlada por agentes do Estado, que coincidentemente não entendem nada de arte

Esse tipo de ação contra o comediante, isto é, um artista, ultrapassa todos os limites do aceitável. Para ser irônico, lembra-me daqueles romances de Franz Kafka, onde o claustrofóbico absurdo é escancarado pela dramaticidade da trama. Qual crime foi cometido pelo comediante? Estamos diante da extrema instrumentalização da força do Estado, com seu aparato administrativo e burocrático, supostamente racional, cuja justificativa é proteger os mais vulneráveis de um... artista. Não se trata de comédia, mas a mais pura tragédia moderna.

Aqui perde-se toda dimensão do que significa o efetivo ataque odioso e perigoso a pessoas reais em contraste ao significado estético de uma narrativa cômica. Por exemplo, o que vem acontecendo com o jogador Vinícius Jr. As manifestações de racismo, no caso, são de efetivo ataque à sua dignidade como ser humano. Os gritos dos torcedores espanhóis contra o jogador não têm qualquer finalidade cômica exceto o propósito de destruí-lo. Naquele ambiente de estádio, o supostamente cômico da expressão “mono” serve à humilhação e destruição. Não é arte, é grito de guerra de um torcedor delirante.

Ora, piadas de Léo Lins estão em outro registro da linguagem. A finalidade não é humilhar e destruir um grupo ou alguém, mas elevar o efeito cômico da linguagem às suas últimas consequências. Quem já assistiu um show de piada sabe que o problema ali não é humilhar um grupo, mas testar os limites da linguagem, testar a narrativa cômica. É como aquela série de filmes de terror Jogos Mortais, que os críticos de cinema apelidaram carinhosamente de “tortura pornô”, por testarem os limites gráficos da violência. Piadas do Léo Lins seriam uma forma de “humor pornô”, pois testam todos os limites verbais do sujo, violento e desprezível no ser humano como expressão do “engraçado”.

Se não fizermos a distinção entre realidade e arte, destruiremos a arte e a realidade em nome de uma suposta justiça de Estado. Quem define as fronteiras entre arte e realidade? Não pode ser força cega de um Estado burocrático legal, racional e arbitrário. Quem se ofende com piadas precisa compreender a natureza própria da arte de contar piada para rirmos da nossa própria condição. Como dirá Bergson, que eu cito de orelhada: o riso é uma forma de distanciamento crítico, uma maneira de nos libertarmos temporariamente da seriedade da vida cotidiana.

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Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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