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Francisco Razzo

Francisco Razzo

Francisco Razzo é professor de filosofia, autor dos livros "Contra o Aborto" e "A Imaginação Totalitária", ambos pela editora Record. Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP.

Racismo

A perversa medida da identidade

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Agora, universidades têm tribunais raciais que decidem o tom de pele certo para um estudante fazer jus à vaga. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Ao fim de uma entrevista de emprego, depois de ter passado em todas as etapas, o RH te liga e diz: “Seu currículo é excelente, mas o formato do seu nariz não convenceu os diretores”. Um elogio, seguido de um parecer estético. Competência, aqui, é só um detalhe secundário. Perfumaria. Parece loucura, mas é exatamente o que aconteceu com Samille Ornelas, estudante aprovada em Medicina pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Entrou com nota, saiu com laudo de aparência. Sua matrícula foi cancelada por não apresentar, segundo uma banca técnica, o fenótipo preto ou pardo exigido pela vaga.

O documento oficial alegou: Inapta. A justificativa do tribunal examinador: “O candidato foi considerado INAPTO no procedimento de heteroidentificação no qual não foram identificadas características fenotípicas da condição autodeclarada, por meio da verificação do vídeo enviado”.

O sistema brasileiro criou um tipo novo de exclusão: o racismo estético de Estado

Não basta ser pobre, estudar em escola pública, vencer um dos vestibulares mais concorridos do país. É preciso parecer racialmente adequada. De preferência, em vídeo, com iluminação neutra e sem muita produção. Samille gravou um vídeo de 17 segundos. Nesse tempo, decidiram-se sua origem racial. A banca não viu o esforço dela, as notas em Física, Biologia ou Matemática. Viu luz, sombra e simetria racial. É o tribunal racial quem decide se parece ou não preta ou parda. Resultado: inapta.

O sistema brasileiro criou um tipo novo de exclusão. Racismo estético de Estado. Antes, discriminava-se pelo que se via. Agora, também se discrimina por não ser visto o suficiente. Samille não foi chamada de branca. Foi desclassificada por não ser visualmente parda.

Esse tipo de triagem já foi comum em regimes que oficializaram critérios raciais: os regimes onde o tom da pele determinava o destino das pessoas, onde uma gota de sangue bastava para definir a raça oficial, como nas antigas leis de pureza e nos manuais de segregação que regulavam a cor como destino biológico. Agora, retorna em versão tecnocrática e universitária do processo racialmente seletivo.

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Em alguma época, fazia-se em silêncio, por convenções sociais. Hoje, segue protocolo. Com banca, ata, parecer e decisão judicial. O Brasil, que nunca se organizou por critérios de pureza racial, agora adota medições técnicas de aparência para definir quem pode ou não ocupar um lugar. A cor, que sempre foi fluida – às vezes castanha, às vezes jambo, às vezes canela –, precisa agora passar por aferição do tribunal da raça pura.

Samille cursou um semestre inteiro. Tirou nota. Estudou Anatomia, Bioquímica, Fisiologia. Depois, foi excluída. Não por falta de conhecimento. Não por falta de origem social. Mas por ambiguidade facial. Sua cor não justificou a cota. O argumento oficial fala em evitar fraudes. A dúvida é: que fraude? Samille não herdou latifúndio, nem frequentou escola bilíngue. É baiana, filha da escola pública, ex-aluna de Biomedicina via ProUni. A única coisa que não passou foi o rosto. Talvez tenha passado demais. Ficou no meio do caminho. E o meio, no Brasil, costuma ser o lugar mais inseguro da política.

Cria-se um sistema que premia a cor e desconfia das capacidades do indivíduo. A identidade se torna aparência institucional. Pertencimento, só se for o do contrato fenotípico. Justiça, um concurso de estética racial involuntária. Então, a partir de agora, julgamos pessoas pela... raça. Tudo isso para combater o... racismo. E chamamos de reparação histórica. O nome é nobre. E o método faz Samille entrar pela porta da esperança e sair pela janela do parecer racial.

A partir de agora, julgamos pessoas pela... raça. Tudo isso para combater o... racismo

A ideia de justiça racial estatal parte de um erro persistente: tratar desigualdades como se fossem exclusivamente produto de discriminação. Daí imaginar que políticas identitárias produzirão justiça. O resultado aparece: ressentimento, desigualdade institucional, disputa simbólica interminável. A cor, quando convincente, serve. Quando ambígua, cancela. A história pessoal pode ser desautorizada por 17 segundos de vídeo. E o Brasil, país onde ninguém sabe com precisão quem é branco ou preto, descobre enfim o critério absoluto: a raça.

Esse modelo corrói a confiança no esforço pessoal, mina a legitimidade do percurso acadêmico e instala um tipo nada sutil de segregação, aprovado em edital. A universidade, nesse arranjo, deixa de reconhecer trajetórias e passa a certificar aparências raciais. Vale ressaltar que Samille não foi excluída por ser branca, o que já seria um absurdo. Foi excluída porque a burocracia racial não suporta a zona cinzenta. Exige nitidez. Entretanto, a identidade humana, por definição, é difusa. Ora, a universidade queria um preto ou pardo. Recebeu um ser humano. E isso, no Brasil de hoje, é grave demais. Na verdade, chega a ser insuportável.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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