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Estou assistindo à série Monstros, da Netflix, sobre Ed Gein, ao mesmo tempo em que preparo aulas sobre Hannah Arendt. A coincidência é incômoda. Enquanto Ed Gein esfolava mulheres e transformava o corpo humano em utensílio doméstico, Hannah Arendt tentava compreender como Adolf Eichmann, um burocrata medíocre, pôde enviar milhões de judeus à morte sem jamais sentir culpa. O primeiro é o psicopata grotesco; o segundo, o assassino obediente. Ambos nos devolvem à mesma pergunta: o que torna possível o mal?
Ed Gein vivia isolado, numa fazenda em Wisconsin, cercado por ossos, tigelas de crânios e relíquias. Bem dirigida, a série mostra o quarto materno intacto, o altar profano onde guardava o corpo ausente da mãe. Em certo momento, uma personagem lhe entrega uma caixa com revistas e fotografias nazistas – imagens de prisioneiros, soldados e uma HQ de horror inspirada em Ilse Koch, a “Bruxa de Buchenwald”, acusada de fabricar objetos com pele humana tatuada. É desse imaginário que Gein retira seu delírio. Ele não imita Hitler; imita a perversão estética de um regime que transformou o corpo em matéria-prima. O nazismo, para Ed Gein, não é uma convicção política. Longe disso. Para ele, é uma estética. Ele não quer poder, quer a carne. O mal nele tem forma, textura, cheiro. É artesanal. Feito à mão, como se o inferno fosse um ofício.
A banalidade do mal não é o oposto do mal monstruoso. É sua continuidade
Eichmann, ao contrário, jamais sujou as mãos. Vestia terno, botas delicadamente engraxadas, assinava documentos, despachava memorandos. No tribunal de Jerusalém, repetia frases vazias: “cumpri ordens”, “defendi o Estado”, “não tive a intenção”. Hannah Arendt descobriu algo chocante: ele não era um monstro, era um medíocre. Um funcionário eficiente. O mal, em Eichmann, não nasce da perversão. Tem outra forma: a ausência de pensamento. A incapacidade de imaginar o outro. É a estupidez funcional de quem transforma o crime em rotina e a morte em estatística.
Entretanto, entre o açougueiro de Plainfield e o escriturário de Wannsee há uma simetria. Ed Gein mata por delírio; Eichmann, por dever. Um vive o mal como imaginação doentia, o outro como obediência metódica. O primeiro é o sádico transgressor de toda norma; o segundo encarna metodicamente a norma. O resultado, porém, é o mesmo: a dissolução do humano. Ambos desumanizam suas vítimas, um pela deformação da carne, o outro pela neutralização da linguagem. Ed Gein faz da mulher um objeto. Eichmann faz do homem um número.
Para mim, a banalidade do mal não é o oposto do mal monstruoso. É sua continuidade. Na medida em que o horror se torna regra, o grotesco deforma o rosto. A frieza administrativa realiza o que o psicopata apenas fantasia. O campo de concentração é o artesanato de Ed Gein elevado à escala industrial. A técnica substitui o prazer na medida em que preserva a essência: o apagamento da pessoa.
Como conciliar a absoluta monstruosidade de Auschwitz com a mediocridade de Eichmann? Talvez por isso a série cause tanto desconforto. Ela exibe o mal em sua forma primitiva, visível, suja. E, ao fazê-lo, recorda o mal invisível que preferimos não ver – o que opera discretamente nos sistemas, nas ordens, nas telas. O horror explícito ainda nos causa repulsa; o horror burocrático, não. Um homem que empalha cadáveres é condenado à loucura. Um homem que assina documentos é só um Zé Ninguém. Minha tese é a de que Ed Gein e Eichmann formam um duplo perfeito: o psicopata e o servidor, o fanático e o conformista, o mal como gozo e o mal como função.
Vivemos entre os dois. Produzimos séries para tentar domesticar o primeiro e sistemas para reproduzir o segundo. O horror artesanal se tornou entretenimento. O horror administrativo, política pública. Hannah Arendt viu o perigo onde quase ninguém via: no homem que fala por fórmulas, que repete o discurso oficial, que cumpre ordens sem pensar. O mal, acreditava, é superficial – cresce quando o pensamento se ausenta. O mal de Ed Gein é o abismo. Eichmann é o vazio. E talvez o mais assustador seja perceber que, entre o abismo e o vazio, é o vazio que mais facilmente vence.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




