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Sempre fui fascinado por séries e filmes de zumbis. Para mim, eles revelam a natureza moderna da imaginação apocalíptica. Ou seja, a podridão predatória das massas. George A. Romero, o grande criador do gênero, enxergou na figura do morto-vivo um genuíno comentário sobre o próprio descaminho do século 20. A técnica avança, a barbárie acompanha. A promessa de progresso convive com a capacidade de devorar tudo ao redor.
Romero traduz esse paradoxo em carne apodrecida avançando sobre cidades que acreditaram na redenção pela modernidade. Fez do zumbi devorador uma crítica à fome social insaciável que atravessa as sociedades de massa. O zumbi é o ícone perfeito do nosso recreio consumista. A ficção desenhou essa criatura como corpo arruinado, guiado por impulsos intermináveis e incapaz de qualquer pacto ou racionalidade. É a brutalidade mórbida contaminando tudo e todos. A estética da decomposição é a metáfora perfeita sobre desejo, consumo e violência.
The Walking Dead levou esse imaginário ao limite. A ameaça ultrapassou a carne estragada para mostrar que a ruína física é só um detalhe diante da ruína moral. Quem assistiu a The Walking Dead sabe que o problema são os vivos. A horda dos mortos expõe a disputa por recursos, a ferocidade diante da escassez e a ambição que cresce quando toda ordem social se desfaz. Esse cenário é a topografia convencional involuntária da própria modernidade: a violência funciona como engrenagem escondida sob a superfície das rotinas civilizadas. É a ambição humana o problema.
Em sua nova série, Pluribus, o criador de Breaking Bad abandona a fome insaciável dos zumbis para criar um novo tipo de cenário apocalíptico
Todos esses “apocalipses” carregam a imagem do horror da luta contínua por sobrevivência. O gênero zumbi se organiza com esse código visual: a carne destruída, os passos arrastados, o cheiro da morte. A putrefação e, acima de tudo, a perversão moral das comunidades que resistem. Cada detalhe constrói uma pedagogia primitiva e eficaz da ambição humana pós-guerra. Esse conjunto de imagens sustentou décadas de narrativa sobre o fim da humanidade. A podridão dos mortos indicou algo sobre a podridão dos vivos. E, para mim, essa camada possui mais força do que qualquer “monstro”. E olha que sou fã da franquia Alien – um dia falo melhor sobre isso.
Confesso, contudo, o meu espanto diante da audácia de Vince Gilligan ao subverter toda essa tradição da cultura pop. Em sua nova série, Pluribus, o criador de Breaking Bad abandona a fome insaciável dos zumbis para criar um novo tipo de cenário apocalíptico. A infecção alienígena, capaz de fundir a humanidade em uma mente coletiva, dispensa a agressão. A horda de infectados ignora o ataque físico. O novo “zumbi” deseja servir e sorrir. É inquietante. Gilligan apresenta o fim do mundo em que a ameaça, em vez de derrubar sua porta, bate levemente e oferece, com um sorriso genuíno, ajuda para carregar suas compras. É o autoritarismo perfeito, que, em vez de botas e cassetetes, usa dopamina e consenso. Em Pluribus, a “paz” é a morte da consciência individual.
Essa mudança altera a substância do medo. O horror deixa o campo da decomposição biológica para se tornar o território do hedonismo moral. Se George A. Romero ensinou o temor pela morte do corpo, Gilligan ensina o pavor pela morte da alma via conforto e sorriso. O “vírus” da série traz a felicidade perpétua. Ele suprime a angústia, o conflito e a solidão. A troca proposta é um pacto fáustico secularizado: entrega-se a consciência atormentada e recebe-se a paz de um consenso tranquilo e absoluto.
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Eu vivo em São Paulo há muitos anos e já passei muitas vezes próximo à Cracolândia. A figura do dependente de crack traz a tragédia da busca individual por alívio em uma sociedade decadente. A cena dói, esgota e expõe a carne frágil do mundo real, da dependência química cujas razões são as mais complexas. A felicidade coletiva de Pluribus provoca um pavor maior. A cordialidade compulsória destrói o que sustenta a pessoa por dentro. A carne caída revela miséria; o consenso coletivo absoluto revela a destruição da consciência pessoal.
Em Pluribus, a lógica da produtividade eficiente atinge o paroxismo. O “monstro” é o vizinho perfeitamente disposto a servir e ajudar. É o burocrata que antecipa suas necessidades. É a consciência coletiva que entrega tudo, absolutamente tudo o que você precisar. Opor-se à violência exige coragem física; opor-se à bondade sorridente exige uma fortaleza espiritual rara.
Os gregos tinham uma distinção interessante que nos ajuda aqui. O vírus da felicidade de Pluribus opera o triunfo absoluto da zoé sobre a bíos qualificada. Ele preserva a vida nua – o mero funcionamento metabólico comum a plantas e animais – e aniquila a bíos politikón. Ou seja, a existência consagrada à ação e ao discurso, possível apenas entre iguais que divergem. A vida da pólis exige atrito, distinção e voz. Em Pluribus, o sujeito torna-se um organismo eficiente, desprovido de biografia e incapaz de conflito. Resta apenas a gestão sanitária dos corpos em um cenário de apocalipse da gentileza.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




