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A América nasceu ouvindo e estudando hebraico. Antes de ser um projeto político, a colônia de Plymouth foi uma experiência espiritual: homens e mulheres que, lendo a Escritura Hebraica, interpretavam sua jornada em continuidade simbólica com a história de Israel – não como substitutos do povo judeu, mas como gentios enxertados na mesma narrativa bíblica da aliança. Revisitar essa história e o papel central das Escrituras de Israel na identidade puritana é reencontrar a alma religiosa da primeira América.
O fundamento bíblico da jornada puritana
Os puritanos foram um movimento surgido no interior do protestantismo inglês dos séculos 16 e 17 que buscava aprofundar a Reforma, purificando a Igreja da Inglaterra de práticas consideradas resquícios do catolicismo medieval. Teologicamente calvinistas, enfatizavam a centralidade das Escrituras, a soberania de Deus, a conversão pessoal, a disciplina cristã, a pregação e a piedade doméstica. Entre eles havia um grupo mais radical, os separatistas, como os peregrinos do navio mercante inglês Mayflower, que, por se recusarem a permanecer na igreja estatal, enfrentaram perseguição sobretudo do governo de Jaime I. Tanto separatistas quanto outros puritanos que mais tarde emigraram para o Novo Mundo buscavam formar comunidades moldadas por uma vida de aliança com Deus.
Ao deixarem Leiden, na Holanda, onde haviam vivido por mais de uma década, e iniciarem a jornada que culminaria no embarque no Mayflower, os puritanos interpretaram toda a viagem por meio de uma lente bíblica, vendo-se como peregrinos a caminho de uma “nova Jerusalém”. A travessia rumo ao Novo Mundo, iniciada em setembro de 1620, era compreendida por eles como uma verdadeira peregrinação, conceito profundamente enraizado tanto no judaísmo quanto no cristianismo.
Para esses homens e mulheres, partir para um novo e estranho continente significava também empreender uma jornada espiritual: assim como os fiéis de outrora subiam a Jerusalém em busca da presença de Deus, eles atravessavam o Atlântico convictos de que sua travessia terrena espelhava uma realidade maior. Os passageiros do Mayflower, talvez os peregrinos mais célebres da história, acreditavam estar caminhando rumo a uma nova Jerusalém – não como substituição da Jerusalém bíblica, mas como expressão renovada de seu ideal espiritual que, segundo entendiam, se recapitula na experiência da igreja ao longo das eras.
Em muitos aspectos, William Bradford e seus companheiros enxergavam-se como israelitas em peregrinação: haviam deixado uma terra de opressão e, pela fé, buscavam uma “nova Canaã”
O “Mayflower Compact”, firmado em 11 de novembro de 1620, foi um acordo político e espiritual redigido e assinado pelos homens adultos a bordo do Mayflower pouco antes do desembarque em Plymouth. Como primeira forma de autogoverno da colônia, estabelecia que os signatários formariam um “corpo político civil” comprometido com o bem comum e sujeito a leis justas elaboradas pela própria comunidade sob a autoridade de Deus. O “Compact” deu legitimidade inicial ao assentamento e se tornou um marco da tradição pactual puritana, influenciando profundamente a cultura política que moldaria os futuros Estados Unidos. Quando o Mayflower finalmente alcançou a costa de Plymouth, em 21 de dezembro de 1620, aqueles 132 homens e mulheres não buscavam apenas liberdade religiosa: traziam consigo uma visão teológica abrangente, moldada pela leitura constante da Escritura e pela convicção de que Deus continuava dirigindo a história do seu povo.
William Bradford foi um dos líderes centrais dos peregrinos e o principal governador da colônia de Plymouth, função que exerceu por mais de três décadas. Nascido em 1590, em Austerfield, na Inglaterra, uniu-se ainda jovem ao movimento separatista puritano e acompanhou a comunidade que encontrou refúgio em Leiden, na Holanda, antes de partir para a América no Mayflower em 1620. Como líder da expedição, Bradford via a missão da colônia não como um simples projeto político ou social, mas como parte de uma narrativa sagrada que remontava a Abraão, Moisés e aos profetas – uma continuidade espiritual que conferia sentido às provações, à esperança e ao chamado que impulsionava aquele pequeno povo rumo ao Novo Mundo.
A Escritura Hebraica como fundamento da vida puritana
Essa dimensão bíblica aparece de forma marcante em sua obra, Of Plymouth Plantation. Ali, Bradford narra os primeiros anos da colônia com a mistura característica de vigor e humildade que nasce de uma percepção profunda da providência divina. Em meio ao relato, um detalhe chama a atenção: páginas inteiras escritas em hebraico, com listas de provérbios, nomes, números e expressões retiradas diretamente das Escrituras. O que hoje pode parecer excentricidade acadêmica era, para Bradford e seus companheiros, um gesto de reverência, um retorno deliberado à língua original da revelação.
Formados no ambiente da Reforma Protestante, os puritanos viam o hebraico como a língua santa por meio da qual Deus falara ao seu povo. Para eles, o acesso direto à Palavra não se esgotava na tradução: exigia estudo diligente e aproximação da fonte original. Assim como os reformadores haviam empenhado esforços para verter a Escritura às línguas do povo, Bradford e outros puritanos ansiavam conhecer o texto no original. Seu interesse pelo hebraico não era uma excentricidade intelectual, mas expressão de amor pelas Escrituras e de comunhão espiritual com Israel.
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Bradford chegou a dominar cerca de mil palavras hebraicas, um vocabulário modesto, mas suficiente para ler e meditar em porções significativas do texto bíblico. Esse apreço não era incomum entre protestantes ingleses do século 17: a Reforma renovara o estudo das línguas bíblicas e estimulava a produção de cartilhas, listas de vocabulário e grupos de leitura. No contexto puritano, conhecer a língua original das Escrituras era visto não apenas como um auxílio devocional, mas como um dever teológico, especialmente para aqueles que tinham a responsabilidade de ensinar o povo de Deus.
A América como Nova Canaã
Bradford e seus companheiros entendiam sua experiência por meio das categorias bíblicas que moldavam sua imaginação espiritual. Em muitos aspectos, enxergavam-se como israelitas em peregrinação: haviam deixado uma terra de opressão e, pela fé, buscavam uma “nova Canaã”. Em seus sermões, orações e escritos, a travessia do Atlântico era frequentemente descrita como um novo Êxodo, e a América, como uma Terra Prometida. Para os puritanos, isso não era uma metáfora literária, mas uma forma de discernir a providência divina em sua própria história. Criam que Deus os guiava e que a colônia deveria refletir, ainda que de modo imperfeito, o ideal bíblico de uma comunidade moldada e governada pela Palavra.
Essa leitura não surgiu de forma isolada. Desde o século 16, amplos setores do protestantismo reformado haviam cultivado um “hebraísmo cristão”: a convicção de que o estudo das Escrituras no original aprofundava a fé e de que as promessas de Deus a Israel permaneciam válidas. Bradford, fiel a essa tradição, não via o povo judeu como descartado, mas como parte de um plano divino em andamento. Seu amor pelo hebraico e pela história bíblica expressava uma forma positiva e espiritual do reconhecimento de que Deus continua a agir por meio de Israel e de que, em Cristo, as nações são enxertadas nesse mesmo desígnio redentor.
A construção de Plymouth: provação, aliança e providência
Essa fé moldou profundamente o caráter da colônia. A comunidade de Plymouth via o trabalho, a educação e o culto como expressões concretas de sua aliança com Deus. Bradford descreve com intensidade o primeiro inverno – quando metade dos colonos sucumbiu à fome, aos acidentes e às doenças, e quando ele próprio perdeu sua esposa, Dorothy – não como um simples desastre humano, mas como uma provação análoga às jornadas de Israel pelo deserto. E quando, no ano seguinte, a colheita finalmente veio e a comunidade celebrou a primeira ação de graças, o momento não foi entendido como triunfo humano, mas como confissão de dependência: o reconhecimento humilde de que o Senhor os havia sustentado com o “produto da terra” (Js 5,11-12).
Mais de 400 anos depois, é possível perceber como o puritanismo lançou as bases espirituais da identidade americana
Bradford também liderou a colônia em um momento decisivo de sua história: a aproximação dos Wampanoags. Essa nação indígena, pressionada por inimigos regionais, buscou uma aliança com os recém-chegados. O contato ocorreu por meio de três figuras decisivas: Samoset, o chefe Massasoit e Tisquantum (Squanto), que ensinaram aos peregrinos técnicas essenciais de sobrevivência, como o cultivo de milho e a pesca local. No novembro seguinte, peregrinos e Wampanoags celebraram juntos aquilo que se tornaria o primeiro Dia de Ação de Graças. Nas primeiras décadas, essa aliança se manteve, e há registros de que os peregrinos chegaram a salvar a vida de Massasoit, gesto que reforçou um relacionamento complexo, porém decisivo para a sobrevivência da colônia.
O hebraico e o legado espiritual da colônia
O aprendizado do hebraico, que Bradford cultivou até o fim da vida, copiando palavras e salmos à luz de velas, simboliza esse espírito permanente de busca. Para ele, o hebraico era “a língua mais antiga e santa”, por meio da qual Deus comunicara sua revelação ao mundo. Sua fé estava enraizada na convicção de que a Escritura, nascida em Israel, é a luz destinada a alcançar todas as nações.
O puritanismo, muitas vezes caricaturado como rígido ou sombrio, foi na realidade um movimento de profunda espiritualidade, esperança e reverência pela Palavra. Seus líderes viam a história humana como teatro da glória divina e entendiam que o pacto de Deus com Israel não fora abolido, mas cumprido e ampliado em Cristo, de modo que as promessas antigas alcançavam um novo horizonte. A obediência à Lei, a reverência pelo shabat, a centralidade da pregação e o zelo pela pureza moral expressavam esse anseio de viver em aliança com o Deus de Abraão.
Longe de se considerarem substitutos de Israel, os puritanos se entendiam como herdeiros pela graça, gentios enxertados na oliveira da fé. A analogia com o Êxodo era espiritual, não de usurpação. A nova colônia não pretendia ocupar o lugar da Jerusalém terrena, mas refletir seu ideal de santidade e justiça. Assim, a América puritana nasceu com uma consciência messiânica: uma comunidade edificada sobre a Palavra e submissa à providência divina.
Os peregrinos viviam sua imigração com uma tensão própria das narrativas bíblicas. De um lado, enxergavam a América como uma nova Terra Prometida, identificando-se com os israelitas em busca de liberdade para servir a Deus. De outro, reconheciam na partida um exílio, a dolorosa ruptura com a terra natal que os lançava, como nos relatos do Antigo Testamento, a um “deserto” de incertezas. A travessia do Atlântico podia ser entendida tanto como um êxodo para uma nova Canaã quanto como uma expulsão para um lugar de provação. Em ambas as interpretações, contudo, o paralelo com Israel permanecia central para sua identidade espiritual.
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Ao registrar os invernos rigorosos, as pragas e os conflitos com tribos locais, Bradford jamais perde a dimensão espiritual dos acontecimentos. Cada bênção e cada tragédia eram, para ele, instrumentos da mão de Deus, moldando o caráter do povo para a maturidade e a fidelidade. Até mesmo as alianças com povos nativos eram interpretadas à luz das Escrituras, lembrando os pactos antigos entre Israel e as nações vizinhas, sinais de que a providência divina se manifestava também através de meios humanos e inesperados.
O declínio da colônia e a busca final de Bradford
Mais de 400 anos depois, é possível perceber como o puritanismo lançou as bases espirituais da identidade americana. A crença no chamado divino, na responsabilidade pessoal diante de Deus, na sociedade pactual e na leitura direta da Escritura moldou o coração do que se tornaria o protestantismo moderno. Em sua raiz mais profunda, encontrava-se o apreço pelo Israel bíblico, o povo da aliança que guardava as promessas de redenção e revelava o caráter do Deus que conduz a história.
Esse legado permanece. A própria trajetória de Bradford demonstra que o puritanismo não era um moralismo rígido, mas uma visão de mundo teocêntrica que integrava fé e cultura, razão e piedade, corpo e espírito. Seu interesse pelo hebraico expressava esse impulso: buscar as palavras sagradas era participar da própria revelação. A espiritualidade puritana não buscava afastar-se do mundo, mas transformá-lo por meio da Palavra.
O amor por Israel que permeia o puritanismo tinha caráter teológico e devocional, não político. Reconhecia a fidelidade de Deus às suas promessas e via o povo judeu como parte contínua do desígnio redentor. Para os puritanos, Israel não era um povo rejeitado, mas um mistério em desenvolvimento; eles próprios se entendiam como gentios enxertados na oliveira, conforme a imagem usada pelo apóstolo Paulo em Romanos 11, participantes da mesma graça que sustentara os patriarcas.
O legado puritano não é o de um moralismo rígido, mas o de uma esperança sustentada pela Escritura
A imagem dos peregrinos atravessando o Atlântico ecoa a peregrinação de Abraão deixando Ur: ambos caminham pela fé rumo a uma terra prometida, sem plena certeza do que encontrariam. O Mayflower torna-se, assim, uma espécie de arca da aliança, transportando um pequeno remanescente que confiava na Palavra. Bradford e seus companheiros legaram ao mundo a convicção de que a história humana é sagrada. E que cada geração é chamada a responder ao pacto de Deus com fidelidade, coragem e esperança.
A herança hebraica do puritanismo americano
Hoje, ao recordarmos o Dia de Ação de Graças, vale recuperar esse aspecto frequentemente esquecido da herança puritana. Para aqueles homens e mulheres, gratidão não brotava da abundância, mas da fé, de um reconhecimento explícito da providência divina que os sustentara em meio à escassez. A primeira celebração de ação de graças foi, assim, tanto um testemunho da misericórdia de Deus quanto um eco dos antigos festivais bíblicos de colheita, nos quais o povo confessava que toda boa dádiva procede do Senhor.
Bradford morreu em 1657, sendo sepultado no cemitério Burial Hill, em Plymouth, Massachusetts. Seu epitáfio hebraico – “Jeová é o auxílio da minha vida” (Yehovah ʿezer ḥayyai) –, gravado no obelisco memorial, resume de modo comovente sua trajetória: ele sonhou com uma sociedade enraizada na Escritura, em que a fé moldasse a cultura e o amor por Deus incluísse reverência pelas promessas feitas a Israel.
O legado puritano, portanto, não é o de um moralismo rígido, mas o de uma esperança sustentada pela Escritura. Ao celebrarmos o Dia de Ação de Graças, recuperamos essa herança: a convicção de que Deus guia seu povo, sustenta em meio às provações e transforma a fragilidade humana em ocasião de louvor. Nesse espírito, a gratidão deixa de ser mera emoção e se torna resposta fiel Àquele que conduz todas as coisas para o bem de seu povo.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




