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Como parte de meu estágio na Capitol Hill Baptist Church, em Washington, DC, tive o privilégio de participar, entre os dias 22 e 25 de outubro, da Conferência Niceia 2025, que recordou como, há 17 séculos, bispos e presbíteros de diversas regiões do mundo se reuniram em Niceia (atualmente Iznik, na Turquia) para enfrentar negações sobre a divindade de Cristo. Essa conferência deixou claro que os debates do século 4.º permanecem profundamente relevantes para a fé cristã contemporânea. A formulação do Credo Niceno, fruto da convicção bíblica de que Jesus é verdadeiramente Deus, não foi apenas um marco doutrinário, mas uma afirmação do cerne do evangelho, que é confessado pela Igreja ao longo dos séculos.
O propósito da conferência – celebrar a herança da igreja, recordar a verdade proclamada ao longo dos tempos e renovar o compromisso de proclamar e proteger o evangelho – reflete a própria trajetória que se estendeu de Niceia, em 325, a Constantinopla, em 381. Nesse segundo concílio, a Igreja reafirmou a divindade do Filho e consolidou a compreensão trinitária ao declarar também a plena divindade do Espírito Santo.
Mas, enquanto a conferência era realizada, missionários cristãos estrangeiros continuam a ser expulsos da Turquia sob alegações de ameaça à segurança nacional – desde 2020, mais de 200 deles, juntamente com suas famílias, foram impedidos de retornar ao país. Como resultado, diversas igrejas protestantes ficaram sem pastores. Apesar das garantias constitucionais de liberdade religiosa, o governo limita a formação teológica cristã: o histórico Seminário de Halki permanece fechado e escolas protestantes carecem de reconhecimento legal. Além disso, igrejas têm sido removidas de seus locais de culto, como no caso da comunidade protestante de Bursa, evidenciando um cenário de discriminação religiosa recorrente. E desde 2020 inúmeras igrejas ortodoxas de herança bizantina têm sido dessacralizadas e convertidas em museus, mesquitas ou simplesmente abandonadas à deterioração. Essa política sistemática de reconfiguração e apagamento da memória cristã no espaço público turco tem despertado preocupação internacional, sendo inclusive alvo de críticas por parte da Unesco.
Antes de Niceia
No início do século 4.º, o cristianismo emergia de séculos de perseguição intermitente no Império Romano. Com o Édito de Milão, em 313 d.C., promulgado por Constantino e Licínio, os cristãos receberam liberdade de culto. A Igreja, antes marginalizada, passou a ocupar espaço público e político. Nesse novo cenário, divergências doutrinárias, antes limitadas a contextos regionais, tornaram-se ameaças de fragmentação. Entre elas, destacou-se a controvérsia ariana, surgida por volta de 318 d.C., em Alexandria, quando Ário, presbítero daquela cidade, questionou a eternidade do Filho, afirmando que “houve um tempo em que Ele não era”.
A formulação do Credo Niceno, fruto da convicção bíblica de que Jesus é verdadeiramente Deus, não foi apenas um marco doutrinário, mas uma afirmação do cerne do evangelho
Ário defendia que o Filho era a mais elevada das criaturas, criado “do nada” (ex nihilo), embora superior a toda a criação. Para ele, o Logos era distinto em essência (ousia) do Pai, e não coeterno. Essa posição negava a plena divindade de Cristo e implicava que a salvação não consistiria em uma união com o único Deus, mas apenas em uma elevação moral da humanidade. Em oposição, o diácono Atanásio de Alexandria sustentou que, se Cristo não fosse plenamente Deus, não poderia salvar o ser humano, pois “somente aquele que é verdadeiramente Filho pode tornar-nos filhos de Deus”. Atanásio usa essa ideia para sustentar que: 1. Cristo é Filho por natureza, não por adoção; 2. nós nos tornamos filhos por graça e participação; 3. portanto, somente o Filho eterno pode comunicar a filiação divina a seres criados. O bispo Alexandre de Alexandria condenou os ensinos de Ário em um sínodo local, mas a controvérsia rapidamente se espalhou pelo Oriente, exigindo uma resolução de alcance imperial.
A convocação do Concílio de Niceia
O imperador Constantino, buscando preservar a unidade do Império Romano, convocou um concílio ecumênico na cidade de Niceia, na Bitínia, no ano de 325 d.C. Reuniram-se entre 250 e 318 bispos, em sua maioria orientais, embora representantes ocidentais como Ósio de Córdoba tenham participado. Eusébio de Cesareia relata que o imperador compareceu vestindo trajes imperiais, mas ouviu respeitosamente os bispos e incentivou a busca da paz. Embora Constantino não tenha elaborado a definição teológica, ele insistiu em um consenso claro que eliminasse ambiguidades arianas.
O concílio produziu um credo declarando que o Filho é “gerado, não criado, consubstancial [homoousios] ao Pai”. O termo homoousios foi adotado para afirmar a igualdade essencial entre o Pai e o Filho, impedindo interpretações subordinacionistas. O credo concluía com anátemas contra aqueles que afirmassem que “houve um tempo quando o Filho não era” ou que Ele era “de outra substância ou essência”. Além disso, o concílio discutiu questões disciplinares, incluindo a data da Páscoa e a reintegração de cismáticos. Apesar da condenação formal de Ário e da excomunhão de seus principais apoiadores, o concílio não encerrou plenamente a controvérsia.
Ário morreu repentinamente em 336 d.C., em Constantinopla, por uma hemorragia interna súbita, pouco antes de ser readmitido na comunhão da Igreja – evento interpretado por muitos contemporâneos como um juízo divino, semelhante à morte de Judas Iscariotes.
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Os conflitos continuam
Após Niceia, muitos bispos desconfortáveis com o termo homoousios, temendo interpretações modalistas, promoveram fórmulas alternativas. Surgiu o semiarianismo, que preferia homoiousios (“semelhante em substância”), tentando manter uma diferença ontológica entre Pai e Filho. Atanásio, agora bispo, tornou-se o principal defensor da fé nicena, mas foi exilado cinco vezes entre 335 e 366 sob pressões políticas e teológicas. Sínodos como os de Sirmium (351 e 357) buscaram compromissos ambíguos. A instabilidade doutrinária revelou a necessidade de uma formulação trinitária mais precisa, que resolvesse não apenas a cristologia, mas também a compreensão do Espírito Santo.
Niceia havia afirmado a divindade do Filho, mas deixado pouco definido o Espírito Santo, mencionado apenas de forma breve no Credo. Isso permitiu o surgimento dos chamados pneumatômacos (“combatentes do Espírito”), que negavam sua plena divindade. Nesse contexto, os Pais Capadócios – Basílio de Cesareia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa – desenvolveram uma linguagem capaz de sustentar tanto a unidade divina quanto a distinção das pessoas. Basílio afirmava que o Espírito Santo “é inseparável do Pai e do Filho, pois vive com eles eternamente”. Gregório de Nazianzo resumiria: “Adoramos o Pai, o Filho e o Espírito Santo – uma só divindade em três hipóstases”.
Com a ascensão de Teodósio I, a fé nicena ganhou respaldo imperial. Em 380, o Édito de Tessalônica estabeleceu o cristianismo trinitário niceno como religião oficial do Império Romano. No ano seguinte, Teodósio convocou o Concílio de Constantinopla, reunindo cerca de 150 bispos, principalmente orientais. Este concílio reafirmou o credo niceno, condenou o arianismo e os pneumatômacos e ampliou o Credo, declarando que o Espírito Santo é “Senhor e vivificador, que procede do Pai, e com o Pai e o Filho é juntamente adorado e glorificado”. Assim, a compreensão trinitária tornou-se normativa para a ortodoxia cristã, consolidando a noção de uma única essência (ousia) compartilhada por três hipóstases distintas.
O significado teológico
O percurso entre 325 e 381 representa um desenvolvimento teológico gradual, no qual a Igreja buscou expressar de forma fiel à Escritura a identidade divina de Cristo e do Espírito Santo. Niceia preservou a lógica da salvação na encarnação, garantindo que ser salvo significava participar de forma real na vida divina. Constantinopla completou essa visão ao afirmar a divindade do Espírito, reconhecendo-o como agente da comunhão entre Deus e a humanidade. A formulação trinitária resultante não foi mera especulação filosófica, mas confissão da fé vivida no culto, na oração e na economia da salvação. Assim, a Igreja consolidou a ortodoxia trinitária que moldaria a teologia cristã ao longo dos séculos subsequentes.
Niceia havia afirmado a divindade do Filho, mas deixado pouco definido o Espírito Santo, mencionado apenas de forma breve no Credo. Isso foi resolvido no Concílio de Constantinopla
Niceia 2025
A programação da Conferência Niceia 2025 foi intensa e cuidadosamente planejada. Havia cerca de 500 participantes de 45 países, das mais diversas denominações protestantes. O dia 22 foi dedicado a um tour por Niceia (atual Iznik), proporcionando um contato direto com o cenário dos eventos que marcaram o concílio. Visitamos a Igreja de Hagia Sofia de Niceia, originalmente construída no século 4.º e posteriormente reconstruída no século 6.º por Justiniano. Ela se tornou célebre por abrigar o Segundo Concílio de Niceia em 787 d.C., dedicado à controvérsia iconoclasta. Em seguida, conhecemos a chamada “Igreja B”, usada entre os séculos 11 e 13, durante o período bizantino tardio. Também visitamos o Teatro Romano de Niceia, construído entre os anos 111 e 113 d.C. durante o principado de Trajano, o qual, no século 13, foi parcialmente adaptado para uso como igreja. Com a conquista muçulmana da cidade no século 14, Hagia Sofia foi transformada em mesquita, enquanto as demais estruturas cristãs foram gradualmente abandonadas.
O local exato onde ocorreu o Primeiro Concílio de Niceia perdeu-se ao longo da história; entretanto, uma das hipóteses recentes aponta para a “basílica submersa”, descoberta em 2014 no Lago Iznik, que também foi visitada durante o tour.
No primeiro dia de palestras, Albert Mohler, presidente do Southern Baptist Theological Seminary (EUA), abriu a conferência com a mensagem “Um Senhor, uma fé, um evangelho: A importância dos credos”, ressaltando o papel indispensável da sã doutrina na vida cristã. Em seguida, Ligon Duncan, chanceler do Reformed Theological Seminary (EUA), nos conduziu por uma análise histórica em “Qual a importância de Niceia? A Igreja depois do Credo”, destacando a continuidade da fé ao longo dos séculos. O dia foi encerrado por Sherif Fahim, professor de Novo Testamento na Alexandria School of Theology (Egito), com a exposição “Cremos em Deus o Pai”, reafirmando a soberania absoluta de Deus. Ao longo do dia, diversos workshops foram oferecidos, abordando temas relacionados à confissão da fé e à vida da igreja. Um deles foi proferido por Tiago J. Santos Filho, diretor-executivo do Ministério Fiel (Brasil), tratando de “Deus o Pai e o problema do mal”.
No segundo dia, Michael Reeves, presidente da Union School of Theology (País de Gales), ao tratar do tema “Cremos em um só Senhor Jesus Cristo”, apresentou uma impactante mensagem sobre o contraste entre o racionalismo filosófico e a revelação em Cristo – momento que, para mim, marcou o ponto alto da conferência. Kevin DeYoung, pastor da Christ Covenant Church (EUA), fez uma exposição magistral sobre “Deus o Filho: a humanidade de Jesus”, dialogando com a Escritura, os Pais da Igreja, autores medievais e Francis Turretin. À tarde, participei dos workshops de Augustus Nicodemus, pastor da Esperança Bible Presbyterian Church (EUA), que expôs Colossenses enfatizando a suficiência de Cristo; e de Mark Thompson, reitor do Moore Theological College (Austrália), que demonstrou como cada afirmação do Credo Niceno encontra fundamento nas Escrituras. À noite, Harshit Singh, pastor no sul da Ásia, abordou “Deus o Espírito Santo”.
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A conferência foi concluída no sábado, em um ambiente de comunhão e renovado senso de missão para a igreja contemporânea. John Folmar, pastor da Evangelical Christian Church em Dubai (Emirados Árabes Unidos), tratou da unidade da igreja, exortando-nos a permanecer juntos na verdade e lembrando que a verdadeira unidade adorna o evangelho. Ken Mbugua, pastor da Emmanuel Baptist Church em Nairóbi (Quênia), encerrou a programação apontando para a esperança escatológica e a recompensa eterna reservada em Cristo.
No domingo, após a conferência, visitei Hagia Irene, possivelmente o local do Concílio de Constantinopla, onde os bispos reafirmaram o Credo Niceno e consolidaram a doutrina trinitária. Construída no século 4.º, talvez por ordem de Constantino, é uma das mais antigas igrejas de Constantinopla e antecede a fama de Hagia Sophia. Após a tomada da cidade pelos muçulmanos, em 1453, não foi convertida em mesquita, mas foi usada como arsenal e, posteriormente, como museu e espaço cultural. Atualmente está em obras, dificultando a locomoção de visitantes.
A missão da Igreja
É surpreendente perceber que apenas 7% da população mundial vive em sociedades marcadas pelo secularismo, onde se busca expulsar a religião cristã do espaço público – e mesmo nesses contextos, nem todos aceitam plenamente esse paradigma. Isso revela que o anseio pela transcendência e pelo único Deus criador permanece vivo na experiência humana e que a fé cristã continua sendo uma força pública relevante e inevitável.
O Credo de Niceia passou a definir a identidade cristã como proclamação da soberania do Salvador Jesus sobre toda a realidade
Essa percepção me remete ao Concílio de Niceia, quando, em meio a pressões políticas e disputas teológicas, a igreja confessou que Jesus Cristo é “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro” e “da mesma substância do Pai”. Não se tratou apenas de uma definição doutrinária, mas de uma declaração pública e contracultural: o verdadeiro Senhor do mundo não era o imperador, mas o Cristo entronizado todo-poderoso. Assim, o credo de Niceia passou a definir a identidade cristã como proclamação da soberania do Salvador Jesus sobre toda a realidade.
Hoje, ao anunciar o evangelho e reunir-se em adoração, a Igreja reafirma politicamente essa mesma verdade: Jesus reina. A adoração se torna testemunho de fé, esperança e resistência espiritual diante de qualquer tentativa de reduzir a fé ao âmbito privado. Dizer “cremos em um só Senhor” continua sendo um ato corajoso público e político de fidelidade ao Reino que não terá fim.
“Um só Senhor. Uma só fé. Uma só esperança.” Foi uma alegria participar desta conferência que celebra um concílio marcante para a Igreja global. Sigamos proclamando o mesmo evangelho do “Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai”, para todas as nações.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos




