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Cena de Sangue de Heróis, primeiro filme da Trilogia da Cavalaria.
Henry Fonda (segundo da esquerda para a direita) e John Wayne (segundo da direita para a esquerda) em cena de Sangue de Heróis, primeiro filme da Trilogia da Cavalaria.| Foto: Divulgação

A “Trilogia da Cavalaria”, de John Ford, é composta por três filmes: Sangue de heróis (Fort Apache, de 1948), Legião invencível (She Wore a Yellow Ribbon, de 1949) e Rio Grande (Rio Grande, de 1950). Esses filmes são ambientados no último quarto do século 19, no Velho Oeste norte-americano, e giram em torno das interações entre a cavalaria do exército dos Estados Unidos e as tribos indígenas, além de explorarem temas como dever, honra e sacrifício. Cada filme tem sua própria narrativa e foco, mas compartilham uma estética comum e a presença do ator John Wayne. O sucesso da Trilogia da Cavalaria foi tão grande que muitos usaram as fórmulas criadas nessa sequência para fazer inúmeros filmes de cavalaria nas duas décadas seguintes.

Sangue de heróis (1948)

Dirigido por John Ford, Sangue de heróis é o primeiro filme da Trilogia da Cavalaria e tem como tema principal o confronto entre a cavalaria dos Estados Unidos e as tribos indígenas Apache. O enredo, que se passa no fim dos anos 1870, foca nas tensões internas e externas em um remoto forte da cavalaria. Cenas retratam o aprendizado de montaria, além de apresentarem danças, serenatas, visitas, jantares, bebidas e punições, compondo um retrato autêntico e envolvente da vida na caserna.

A história começa com o tenente-coronel Owen Thursday (interpretado por Henry Fonda), um militar rigoroso e orgulhoso, assumindo o comando do 7.º Regimento de Cavalaria, no Forte Apache. Thursday é um oficial que construiu sua carreira no leste dos Estados Unidos, durante a Guerra Civil, mas que não tem experiência com as realidades do Oeste e, mais especificamente, com a complexidade da relação entre o exército e os indígenas. Para ele, a guerra é uma questão de honra, glória e obediência rígida à hierarquia militar.

Ao chegar ao forte, Thursday encontra um grupo diversificado de soldados, incluindo o capitão Kirby York (John Wayne), que é um oficial veterano da Guerra Civil com mais experiência no Oeste e maior sensibilidade para lidar com as tribos indígenas. York entende que as tribos Apache, lideradas pelo chefe Cochise, não são inimigos imediatos e que os conflitos e tensões podem ser resolvidos de forma pacífica.

No entanto, o tenente-coronel Thursday é inflexível e sem imaginação em sua visão de mundo. Ele ignora os conselhos de York e insiste em um ataque direto contra os Apache, subestimando a capacidade e a organização das tribos. Thursday está mais preocupado com a glória pessoal e com a imagem que será transmitida ao comando do departamento ao qual é subordinado do que com a segurança de seus homens.

O sucesso da Trilogia da Cavalaria foi tão grande que muitos usaram as fórmulas criadas nessa sequência para fazer inúmeros filmes de cavalaria nas duas décadas seguintes

O clímax de Sangue de heróis ocorre quando Thursday lidera uma missão contra os Apache, ignorando os avisos de York. Sua arrogância e desprezo pela cultura indígena resultam em uma emboscada trágica, levando à derrota da cavalaria. As fontes históricas para o “massacre” são o Combate de Fetterman, ocorrido em 22 de dezembro de 1866, e a Batalha de Little Bighorn, em 25-27 de junho de 1876 – duas derrotas traumáticas do Exército dos Estados Unidos nas guerras indígenas.

Na cena final, York, promovido a tenente-coronel, comanda o 7.º de Cavalaria e reverencia Thursday como herói, apesar de sua liderança falha. Isso destaca o tema da transformação da história em mito, em que feitos militares são glorificados, mesmo com ações e resultados questionáveis. Ford sugere que, apesar de serem falsos, esses mitos são necessários para manter a unidade e o propósito social.

Legião invencível (1949)

O segundo filme da Trilogia da Cavalaria, Legião invencível, é considerado um dos mais visualmente impressionantes de John Ford, e ganhou o Oscar de Melhor Fotografia. Jim Kitses, em Horizons West, afirmou que “Legião invencível celebra um mundo harmonioso onde as tempestades são enfrentadas, os fracassos superados, as lealdades honradas e o mérito recompensado. [...] É impossível alguém amar o western e não amar o filme Legião invencível”.

O enredo gira em torno do capitão Nathan Brittles (John Wayne), um oficial veterano da cavalaria. O filme começa em agosto de 1876, no Forte Starke, com Brittles a poucos dias de sua aposentadoria. Ele é um oficial respeitado e amado por seus homens do 2.º Regimento de Cavalaria, mas enfrenta uma última missão complicada antes de deixar o exército. Após a derrota do 7.º de Cavalaria, do tenente-coronel George A. Custer, contra as tribos indígenas Sioux, Cheyenne e Arapaho na já mencionada Batalha de Little Bighorn, Brittles recebe a missão de evitar mais uma batalha, transportando mulheres do forte para um local seguro e tentando negociar a paz com as tribos indígenas Cheyenne e Arapaho em rebelião.

Entre as mulheres que Brittles deve proteger estão Abby Allshard (Mildred Natwick), esposa do major MacAllshard (George O’Brien), comandante do forte; e a jovem Olivia Dandridge (Joanne Dru), que se torna o centro de um triângulo amoroso entre dois jovens oficiais da cavalaria, o primeiro-tenente Flint Cohill (John Agar) e o segundo-tenente Ross Penell (Harry Carey Jr.). O título do filme em inglês faz referência à fita amarela que Olivia usa no cabelo, um símbolo do amor por um oficial da cavalaria, sem revelar qual dos dois é o destinatário de seu afeto.

Enquanto Brittles conduz sua missão, ele enfrenta desafios de todos os lados: o agravamento das tensões com as tribos indígenas, o desgaste emocional de sua iminente aposentadoria e as questões de lealdade entre seus homens. Um dos pontos centrais do filme é o respeito de Brittles pelas tribos indígenas. Ele busca evitar um confronto desnecessário, mesmo que alguns de seus superiores prefiram a guerra.

O sargento Tyree (Ben Johnson) mantém sua lealdade ao Sul e ao passado. Durante uma missão fracassada de Brittles, a tropa encontra o soldado Smith (Rudy Bowman) morrendo. Delirante, Smith se refere a Tyree como capitão, revivendo seu passado sulista como general Rome Clay, antes de falecer. Seu heroísmo, simbolizando o sacrifício do Sul, é honrado com um enterro sob uma bandeira rebelde, acompanhado por Tyree e outros ex-confederados. A cena, com um ambiente sombrio e palavras respeitosas, embora pareça uma digressão, está no cerne do filme.

O filme culmina em uma sequência de ações que evidenciam a habilidade de Brittles como líder militar, ao usar negociação e diplomacia para evitar uma batalha em larga escala entre a cavalaria e os índios Cheyenne e Arapaho. Ao final, embora oficialmente aposentado, Brittles é promovido a tenente-coronel e convocado novamente para o serviço por seus superiores. Desta vez, ele ficaria responsável pelo comando dos batedores indígenas do exército, unidade na qual as Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos, conhecidas como “Boinas Verdes”, têm suas raízes. Essa convocação reconhece sua competência única na liderança da cavalaria.

Rio Grande (1950)

Rio Grande é o terceiro e último filme da Trilogia da Cavalaria, e é centrado em Kirby York (John Wayne), que havia aparecido anteriormente em Sangue de heróis, mas agora em uma fase diferente de sua vida e carreira. Desta vez, o tema principal é a relação de York com seu filho e as complexidades das relações familiares dentro do contexto militar.

O filme começa com o tenente-coronel York comandando, no verão de 1876, o 2.º Regimento de Cavalaria, no Forte Stark, no Texas, próximo ao Rio Grande, onde enfrenta incursões constantes dos Apache vindos do México. York, sob o comando do general Philip Sheridan (J. Carrol Naish), comandante geral da Divisão Militar do Missouri, quartel-general responsável pela pacificação das Grandes Planícies, está sob grande pressão para manter a paz e proteger o território, mas sua vida se complica ainda mais quando seu filho, Jeff York (Claude Jarman Jr.), se alista no exército sem seu consentimento.

A visão moral e espiritual subjacente à Trilogia da Cavalaria, muitas vezes implícita nas narrativas de Ford, reflete valores de dever, sacrifício, honra e hierarquia

Jeff é um jovem impetuoso que quer provar seu valor ao pai, mas há uma tensão evidente entre os dois. York sente-se dividido entre seu dever como oficial e seus sentimentos como pai, especialmente porque ele não vê o filho há muitos anos, após um divórcio amargo com sua esposa sulista, Kathleen (Maureen O’Hara). A chegada de Kathleen ao forte para tentar tirar o filho do exército apenas aumenta o drama familiar.

Enquanto York tenta manter o controle sobre seu forte e sua missão, ele também precisa lidar com os desafios de reconciliar-se com o filho e a ex-esposa. O filme é uma reflexão sobre a difícil interação entre os deveres familiares e as responsabilidades militares. No entanto, os laços familiares começam a se restaurar quando York, seu filho e sua tropa de cavalaria enfrentam uma missão perigosa para resgatar crianças sequestradas pelos Apache. Jeff se destaca e se torna herói, provando seu valor e iniciando uma reconciliação com o pai, que também se reconcilia com sua ex-esposa.

Virtudes a serem imitadas, vícios a serem evitados

A visão moral e espiritual subjacente à Trilogia da Cavalaria, muitas vezes implícita nas narrativas de Ford, reflete valores de dever, sacrifício, honra e hierarquia. Ao mesmo tempo, também alerta para os perigos do orgulho, da arrogância e da insubordinação, que são vistos como vícios a serem evitados – as duas ênfases ressoam claramente princípios morais cristãos.

Nos três filmes, a virtude do dever é uma constante. Os protagonistas, especialmente os personagens interpretados por John Wayne, como o capitão Kirby York em Sangue de heróis e Rio Grande, e o capitão Nathan Brittles em Legião invencível, demonstram uma dedicação inabalável às suas obrigações, mesmo quando isso exige sacrifícios pessoais. Em uma perspectiva cristã, o senso de dever é uma virtude importante, frequentemente associada ao princípio bíblico de que “aquele que jura [...] cumpre o que prometeu, mesmo com prejuízo próprio” (Salmo 15,4) e de seguir o chamado de Deus mesmo que isso envolva sacrifícios pessoais.

Brittles, por exemplo, está prestes a se aposentar em Legião invencível, mas ele continua sua missão com determinação até o fim, mesmo sabendo que a recompensa pessoal é mínima. Essa noção de serviço desinteressado, de colocar o bem comum acima dos interesses pessoais, reflete a virtude cristã da caridade e do sacrifício, como ensinado nas Escrituras.

Outro tema central é a honra, tanto no sentido de integridade moral quanto no comprometimento com a verdade e o dever. Em Sangue de heróis, o capitão Kirby York representa a coragem moral de se opor a um superior, o tenente-coronel Thursday, quando percebe que seus planos são perigosos e injustos. Sua bravura, não apenas no campo de batalha, mas também ao enfrentar autoridades com a verdade, reflete a coragem moral cristã, que valoriza a defesa da justiça mesmo em situações de grande pressão.

A coragem física dos personagens também é exaltada, mas não como mera valentia cega de enfrentar o perigo, e sim como a coragem com propósito e integridade. Essa postura reflete a virtude bíblica da fortaleza (fortitude), isto é, a coragem em situações difíceis, como exemplificado por santos do passado que enfrentaram adversidade e perseguição em prol da fé cristã ou de um bem maior.

Um dos temas mais fortes em Rio Grande é a importância da reconciliação familiar. A relação entre o tenente-coronel York, seu filho Jeff e sua esposa Kathleen, que havia sido abalada por separação e distância, é restaurada ao longo do filme. A família, em uma perspectiva cristã, é o núcleo central da sociedade e da vida espiritual. O filme sublinha o papel do pai como líder da família, e a reconciliação final sugere que, apesar das dificuldades, o perdão e o restabelecimento da unidade familiar são não só possíveis, mas essenciais. Essa visão reflete a ênfase cristã na família como uma instituição divina, onde os pais têm a responsabilidade de educar e guiar seus filhos no caminho da retidão, e os filhos, por sua vez, devem respeito e obediência aos pais.

Apesar de ser ambientada em um contexto de guerra e conflito, a Trilogia da Cavalaria muitas vezes mostra a importância da justiça equilibrada pela misericórdia. Em Sangue de heróis, Kirby York procura um equilíbrio entre a justiça militar e a compaixão pelas tribos indígenas. Embora esteja disposto a lutar, ele também entende a importância de reconhecer a dignidade dos Apache e tentar uma solução pacífica. Esse equilíbrio reflete a visão cristã de que a verdadeira justiça deve ser temperada pela misericórdia, como ensinado por Cristo nos Evangelhos (Mateus 5,7).

Em Legião invencível, vemos a importância da humildade no capitão Brittles, que aceita sua aposentadoria com dignidade e se submete às ordens superiores sem ressentimento. Esse respeito pelas hierarquias e instituições reflete um princípio cristão de submissão às autoridades legítimas, desde que estas não ordenem algo contrário à lei de Deus. A humildade demonstrada pelos personagens em aceitar seu destino e obedecer às ordens, mesmo quando discordam ou estão em desacordo com seus interesses pessoais, é uma virtude fundamental para a visão moral cristã.

Apesar de ser ambientada em um contexto de guerra e conflito, a Trilogia da Cavalaria muitas vezes mostra a importância da justiça equilibrada pela misericórdia

O orgulho é retratado como um vício grave, particularmente no personagem do tenente-coronel Owen Thursday em Sangue de heróis. Sua arrogância o leva a subestimar os Apache e a ignorar os conselhos de oficiais subalternos mais experientes, como York. Thursday vê os Apache como inferiores e está obcecado com sua própria glória e reputação. Esse orgulho culmina em sua ruína e na destruição de seus homens. Na moral cristã, o orgulho é considerado um dos pecados capitais, visto como a raiz de muitos outros vícios. Thursday é um exemplo clássico do dito bíblico de que “a soberba precede a ruína” (Provérbios 16,18). A lição de Sangue de heróis é clara: o orgulho pessoal e a arrogância são destrutivos, especialmente quando colocam em risco os outros. O filme sugere que a verdadeira liderança é marcada pela humildade e disposição para ouvir os conselhos sábios, virtudes opostas ao orgulho de Thursday.

A insubordinação é tratada de forma negativa na trilogia, embora em diferentes níveis. Em Rio Grande, a tensão entre York e seu filho Jeff exemplifica as consequências de um filho que tenta desafiar a autoridade paterna. Jeff entra no exército sem o consentimento de seu pai, e o filme explora as dificuldades emocionais e as consequências que surgem desse ato. A mensagem subjacente de que a desobediência à autoridade familiar ou institucional pode trazer desarmonia e perigo é um tema coerente com a ética cristã, que enfatiza o respeito e a honra às figuras de autoridade, especialmente pais e superiores.

Além disso, a desobediência no campo militar também é retratada como um ato de imprudência, mostrando que a falta de disciplina e respeito à ordem estabelecida pode levar ao caos e à destruição. Esse respeito à autoridade, no contexto cristão, reflete o mandamento bíblico de honrar pai e mãe (Êxodo 20,12), bem como a importância de seguir as estruturas de autoridade em sociedade, desde que justas.

Tensões sociais e políticas no Velho Oeste

Sangue de heróis subverte o lugar comum nos westerns, ao inverter os papéis tradicionais, com o cenário simbolizando as divisões de classe, raça e sexo presentes na sociedade norte-americana. O tenente-coronel Thursday é apresentado como um tirano que desrespeita o código de honra civilizacional, enquanto os índios, geralmente vistos como inimigos selvagens, são retratados como guerreiros dignos. As mulheres têm um papel tão importante quanto os homens. Se Thursday simboliza o autoritarismo e a aristocracia anglo-escocesa, Mary O’Rourke (Irene Rich) representa os princípios democráticos e igualitários irlandeses. Ou seja, as mulheres desempenham um papel crucial na coesão social do forte, algo raro nos westerns da época.

O Exército dos Estados Unidos, composto por soldados de origem irlandesa e sulista, reflete divisões políticas e sociais do pós-Guerra Civil, com oficiais protestantes nortistas no comando do regimento formado por imigrantes católicos e sulistas. No entanto, Sangue de heróis sugere uma possibilidade de ascensão social através do filho de um sargento irlandês, Michael O’Rourke (John Agar), que estudou em West Point e retorna ao forte como segundo-tenente – e que namora Philadelphia (Shirley Temple), filha de Thursday, que não admite quando ambos anunciam o noivado. À medida que a trama se desenrola, Thursday se mostra um comandante ineficaz, desprezando tanto os índios quanto os irlandeses. Já em Rio Grande, a presença destacada do capitão francês St. Jacques (papel de Peter Ortiz, um dos mais condecorados fuzileiros navais dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial), do soldado alemão Heinze (Fred Kennedy) e do batedor indígena navajo Son of Many Moons (“Filho de Muitas Luas”) representa a bravura e a contribuição de outras etnias, para além das de origem anglo-escocesa e irlandesa, para as operações militares da cavalaria. Na verdade, o Exército dos Estados Unidos termina por servir como importante elemento simbólico de unidade social e nacional, tanto em Sangue de heróis como em Rio Grande.

Em Rio Grande, o nortista tenente-coronel York é casado com a sulista Kathleen (Maureen O’Hara), que representa os valores familiares, em contraste com a autoridade militar. Embora Kathleen critique o militarismo, o filme mostra a transformação dela, que acaba por se “converter” aos valores militares, simbolizada por uma cena em que ela coloca de lado suas origens aristocráticas sulistas e começa a auxiliar os soldados em suas dificuldades e tarefas domésticas. Aliás, York e Kathleen se reconciliam ao som da canção Dixie, simbolizando o fim da guerra.

E Rio Grande transforma a cavalaria americana em uma metonímia dos dilemas de uma democracia, sugerindo que uma violação de leis civis e internacionais em prol de uma ação militar contundente pode ser moralmente justificada, o que é ilustrado pela invasão do México para a cavalaria resgatar crianças sequestradas pelos Apache. A ação, ainda que ilegal, é justificada pela natureza monstruosa do inimigo e pela urgência moral do resgate. Assim, o filme reflete as tensões da Guerra Fria, funcionando como uma crítica à “fraqueza” do governo dos Estados Unidos diante da ameaça comunista soviética e chinesa, propondo que uma ação militar pode ser justificada em nome da segurança nacional e de valores civilizacionais. Ou seja, Rio Grande estabelece um paralelo entre as ações da cavalaria no Velho Oeste e as ações militares norte-americanas no começo da Guerra Fria.

Rio Grande foi lançado em novembro de 1950, poucos meses após o início da Guerra da Coreia, que começou com a invasão da Coreia do Norte, apoiada pela União Soviética, em junho de 1950. O filme também estreou algumas semanas depois do ataque da China comunista contra as forças da ONU na Coreia do Sul, em outubro de 1950. Nesse conflito, os Estados Unidos forneceram o maior contingente de tropas entre os 16 países da ONU que enviaram reforços para ajudar a Coreia do Sul na luta contra os invasores comunistas.

A maestria de Ford e interpretação icônica de Wayne

A Trilogia da Cavalaria tornou-se icônica por uma série de razões, combinando a excelência cinematográfica com temas universais e elementos culturais profundamente relevantes.

John Ford é amplamente reconhecido como um dos maiores diretores da história do cinema, e a Trilogia da Cavalaria exemplifica seu domínio das técnicas cinematográficas. A estética visual dos filmes, especialmente o uso das paisagens monumentais do Oeste americano, como o Monument Valley, na fronteira entre os estados de Arizona e Utah, cria uma atmosfera épica que eleva as histórias a um nível mitológico. Ford era mestre na captura da grandiosidade e da beleza selvagem do Oeste, o que conferiu à trilogia um estilo visual único e atemporal.

A abordagem mais humanizada dos indígenas ajudou a Trilogia da Cavalaria a se destacar em um período em que o cinema frequentemente demonizava ou simplificava os indígenas

Legião invencível, por exemplo, é conhecido por sua fotografia excepcional em Technicolor, que ganhou o Oscar de Melhor Fotografia. As paisagens vastas e o uso das cores transmitem um senso de romantismo e nostalgia pelo Velho Oeste, evocando sentimentos profundos de aventura e heroísmo. A composição de suas cenas e o uso inovador da luz e sombra em ambientes exteriores também influenciaram gerações de cineastas.

John Wayne, que interpreta papéis importantes nos três filmes, tornou-se um símbolo do herói americano clássico. Seu desempenho solidificou sua imagem como o cowboy destemido, mas também sensível e moralmente íntegro. Wayne traz à Trilogia da Cavalaria uma complexidade moral e emocional que vai além do simples herói de ação. Seus personagens enfrentam dilemas internos e responsabilidades pesadas, como o equilíbrio entre dever e família, ou a busca pela paz em um ambiente de conflito. Essa profundidade de caráter fez com que o público se identificasse com suas lutas, tornando-o uma figura atemporal.

A trilogia aborda temas que ressoam profundamente, como honra, sacrifício, liderança, o papel do dever e a tensão entre civilização e selvageria. Esses temas transcendem o gênero do western, tornando os filmes não apenas histórias sobre o Velho Oeste, mas sobre dilemas humanos fundamentais. Os personagens principais enfrentam a tensão entre seus deveres como oficiais da cavalaria e suas vidas pessoais. Também a necessidade de sacrifício e honra. A ideia de que os heróis precisam sacrificar seu bem-estar pessoal para o bem comum é central na trilogia. Esse é um tema que se conecta profundamente a noções de heroísmo clássico e aos ideais cristãos de serviço abnegado.

Embora sejam filmes de ação, a Trilogia da Cavalaria se destaca por explorar relacionamentos humanos complexos, especialmente no que diz respeito à lealdade, amizade e respeito entre os personagens. Em Sangue de heróis, o conflito entre Thursday e York exemplifica a tensão entre a lealdade institucional e a integridade moral. Em Rio Grande, o relacionamento entre York e seu filho Jeff exemplifica a dificuldade e a necessidade de reconciliação entre gerações e famílias, temas profundamente evocativos.

O Velho Oeste retratado nos filmes de Ford é tanto uma terra de desafios e perigos quanto uma paisagem de oportunidades e ideais

Legião invencível é particularmente notável por explorar o tema do envelhecimento, algo raro no gênero do western, que geralmente se concentra em personagens jovens e enérgicos. Brittles está se aproximando da aposentadoria e reflete sobre o significado de seu serviço e o legado que deixa. Esse estudo da passagem do tempo, da mudança de gerações e da importância de encarar o fim de uma carreira com dignidade e honra é um tema que comoveu públicos mais maduros, além dos fãs tradicionais dos filmes de western.

Um dos aspectos que diferencia a Trilogia da Cavalaria de outros westerns é a forma como Ford humaniza os conflitos, especialmente as interações entre a cavalaria e os indígenas. Ford oferece uma visão mais matizada e empática dos nativos americanos do que era comum em filmes da época. Em Sangue de heróis, por exemplo, York tenta lidar de maneira justa com os Apache, reconhecendo sua dignidade e a complexidade de sua cultura, ao contrário de Thursday, que os vê como inimigos sem nuances.

Essa abordagem mais humanizada dos indígenas ajudou a Trilogia da Cavalaria a se destacar em um período em que o cinema frequentemente demonizava ou simplificava os indígenas. Ford não apenas representou a cavalaria como heroica, mas também demonstrou as consequências morais das decisões militares e o impacto da arrogância e orgulho, tornando os filmes sofisticados e relevantes.

Um impacto duradouro

A Trilogia da Cavalaria se tornou icônica por sua profundidade emocional e complexidade moral, paisagens deslumbrantes, personagens inesquecíveis e temas atemporais, e por capturar e cristalizar uma visão mítica do Oeste norte-americano. O Velho Oeste retratado nos filmes de Ford é tanto uma terra de desafios e perigos quanto uma paisagem de oportunidades e ideais. A trilogia reforça essa visão nostálgica do passado norte-americano, em que o dever, a coragem, a família, o exército e a moralidade eram essenciais para moldar a nação. Essa visão idealizada do Oeste contribuiu para tornar esses filmes obras-primas do cinema, ajudando a definir o western no imaginário popular. Eles oferecem uma versão romântica, ainda que crítica, do frontier spirit que tem uma ressonância cultural profunda na história americana, consolidando a Trilogia da Cavalaria como obras clássicas do cinema.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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