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“A pedagogia liberal da nossa época, com seu foco em identidade, é na verdade uma força de despolitização... ao enfraquecer o ‘nós’ democrático universal, sobre o qual a solidariedade pode ser desenvolvida, o dever, instilado, e a ação, inspirada, desfaz em vez de fazer cidadãos.” (Mark Lilla)
Era uma manhã de terça feira, se não me engano, e a sala estava significativamente desabitada na classe de Educação Sexual. As aulas de Educação Sexual haviam começado antes, ainda no Centro Pedagógico da UFMG, ao fim dos anos 1980. O básico: anatomia, fisiologia, doenças sexualmente transmissíveis, e a necessidade de “amor”, seja lá o que fosse isso. Mas agora, já no Coltec-UFMG, nosso professor de Biologia era mais ousado: projetou uma imagem levemente pornográfica de um sexo grupal, e entre risadas dos alunos procurou explicar por que aquilo não era bom.
Ou melhor: ele não podia dizer que “não era bom” de modo muito enfático; não podia dizer que seria, assim, errado, sem mais. Afinal de contas, já não era honesto e de bom tom, àquela altura do progresso civilizatório, dizer que haveria coisas “erradas” em sexualidade. E assim o pobre homem limitou-se a dizer que “qualidade” é melhor do que “quantidade”. E assim se encerrou com chave de ouro a minha educação sexual escolar.
A geringonça moral
“Qualidade” é melhor do que “quantidade”: escalei ali os píncaros do discernimento moral “laico”. Lembro-me de sentir dó e certa perplexidade, como estudante evangélico absolutamente minoritário naquele primeiro ano do ensino médio. Os colegas riam e faziam piadas sobre as aulas, enquanto eu tentava entender de onde viria tamanha combinação de iluminismo anatômico e escuridão moral. Ainda carente de instrução filosófica para desfazer o nó, eu via as minhas convicções cristãs crescerem em solidez, diante da desorientação moral e afetiva que engolfava professores e estudantes. Meus jovens colegas, aos meus jovens olhos, tendo vidas sexuais ativas ainda adolescentes, se aproveitando uns dos outros e se machucando mutualmente, começaram a me parecer seres moralmente idiotizados por suas famílias e pela escola, essa instituição sacrossanta.
Agora vivemos em uma sociedade em muitos aspectos mais difícil para as crianças, para os idosos e para as mulheres. Onde o Estado deve cuidar de todos, e na qual cuidamos cada vez menos uns dos outros. Mas a mulher moderna e emancipada não pode admitir isso
Ainda assim, eram outros tempos. Por volta de 1991, durante uma aula de Artes subitamente orfanada quando o professor saiu de sala para fazer algo mais importante, um trio de amigos se aproximou e interrogou à queima-roupa se eu era gay. Afinal de contas, eu tinha uma namorada e nunca havia transado com ela, e isso seria “coisa de gay”.
Fez-se então um profundo silêncio na sala, e vi ali a minha grande oportunidade: “nunca transei com a minha namorada, e só vou transar quando me casar com ela!” Para a minha surpresa, todas as moças se levantaram e me aplaudiram de pé. E realmente nos casamos virgens alguns anos depois. Mas, como eu disse, eram outros tempos. Hoje a pergunta dos meus amigos não seria aceitável, e ainda menos a minha resposta.
Por que as colegas me aplaudiram? Expectativas sociais conservadoras, alguns dirão. Já a socióloga Eva Ilouz diria outra coisa: a desregulamentação dos mercados afetivos e o laissez-faire sexual criou uma situação de vulnerabilidade muito especial para as mulheres. Para se firmar como indivíduos autônomos no mercado e no mundo público, elas tiveram de renunciar a seguranças e suportes emocionais e comunitários que atendiam à sua constituição biopsíquica. Para se tornarem “iguais”, desprezaram suas diferenças, e isso lhes custou caro. E agora vivemos em uma sociedade em muitos aspectos mais difícil para as crianças, para os idosos e para as mulheres. Uma sociedade na qual o Estado deve cuidar de todos, e na qual cuidamos cada vez menos uns dos outros. Mas a mulher moderna e emancipada não pode admitir isso. Prefere engolir o choro.
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O fato é que eu recebi o essencial da minha educação sexual em casa e na igreja, dentro de um enquadramento moral significativo, e esse enquadramento me permitiu administrar intelectualmente as bobagens que ouvia de meus colegas e de alguns professores, incapazes de articular eticamente a questão do sexo. No entanto, muitos anos se passariam até que eu compreendesse o que era, realmente, a engenharia daquela geringonça moral.
O programa
Pois bem: a falta de instrumentos escolares para um julgamento realmente crítico das questões de sexo, reprodução e gênero não era, na verdade, uma “falta”. Esse era exatamente o programa: dotar os alunos de conhecimentos suficientes no campo da saúde sexual e reprodutiva e... emancipá-los. Não havia nada de especial na educação sexual; tratava-se de mais um campo no qual o protagonismo do aluno e a autonomia do sujeito deveriam ser encorajados. O “vazio” moral que eu havia encontrado na escola não era um vazio, mas um cheio, uma proposta substancial. A proposta era dessacralizar o sexo, torná-lo primeiro um fato natural e moralmente neutro, para então colocá-lo sob a órbita da subjetividade.
Isso, acreditava-se e ainda se acredita, seria necessário para a plena cidadania. Pessoas livres de tabus sexuais, de padrões repressivos e negadores do prazer e possuidoras de seus corpos seriam mais felizes, com melhor saúde mental; seriam cidadãos melhores, autoconscientes e protagonistas da democracia. Evidentemente nada disso aconteceu, mas o dogma da liberação sexual não precisa de evidências empíricas. É um axioma, uma metafísica, e “está certo porque está certo”.
O “vazio” moral que eu havia encontrado na escola não era um vazio, mas um cheio, uma proposta substancial. A proposta era dessacralizar o sexo, torná-lo primeiro um fato natural e moralmente neutro, para então colocá-lo sob a órbita da subjetividade
No coração do projeto de dessacralização do corpo e do sexo está o que chamamos de “liberalismo moral”, ou a ideia de que a preservação da autonomia pessoal seria suficiente para tornar lícito o ato sexual. Ou seja, o consenso seria a base moral para a prática sexual. Nessas condições, apenas o estupro seria imoral, e “toda forma de amor” seria permitida. É claro que isso não funciona; para dar um exemplo óbvio, o movimento “MeToo” destacou que desigualdades de poder e influência podem destruir o equilíbrio de autonomia e liberdade que classificaria uma relação como consensual. E agora muitas feministas vêm admitindo que a inelutável diferença biopsíquica de homens e mulheres torna ilusória a regra do consenso.
Mas os problemas não acabam aí. Estamos falando em liberalismo moral e em individualismo expressivo; essa combinação justifica, por um lado, que homens, mulheres e pessoas homo/transexuais vivam o sexo casual, sem compromisso, e que a sexualidade seja abstraída da corporeidade natural e da família. Isso justifica tanto o aborto quanto dissolução do casamento e da família, que seguem ladeira abaixo.
A consciência crítica sobre esses problemas vem se avolumando. Em português, eu recomendaria Adão e Eva depois da pílula, da genial Mary Eberstadt, e Revolução sexual global, de Gabriele Kurby, ambos da editora Quadrante – que está, por sinal, de parabéns pela publicação desses trabalhos em português. E, para quem procura evidência sociológica sobre o impacto negativo da revolução sexual, há o indispensável Mark Regnerus, em Cheap Sex, publicado há alguns anos pela editora da Universidade de Oxford.
Despolitização
Mas não pretendo entrar em detalhamentos nesse artigo; meu ponto, hoje, é que o problema com a educação sexual moderna não é, em primeiro lugar, com a educação sexual, mas com o caráter da sua modernidade, o projeto moral ao qual ela serve. O problema é como o sexo é enquadrado pelos modernos: como uma tabula rasa, uma espécie de criatura do sujeito, reduzido ao seu papel na expressão da identidade e na construção da felicidade do indivíduo. A educação sexual moderna está acorrentada ao liberalismo terapêutico, que faz o mundo girar ao redor do indivíduo.
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Ora, a terapêutica moderna é inerentemente despolitizadora. Essa versão psicologizada do liberalismo, que se tornou o paradigma dominante na formação da identidade moderna, destrói a capacidade dos indivíduos de pertencer a uma comunidade, de assumir responsabilidades morais e de promover o bem comum. Seus efeitos foram muito bem descritos por Mark Lilla, em O progressista de ontem e o de amanhã:
“De todos os desdobramentos que discuti neste livro, o mais autodestrutivo do ponto de vista liberal é a educação baseada na identidade... A pedagogia liberal da nossa época, com seu foco em identidade, é na verdade uma força de despolitização... ao enfraquecer o ‘nós’ democrático universal, sobre o qual a solidariedade pode ser desenvolvida, o dever, instilado, e a ação, inspirada, desfaz em vez de fazer cidadãos. No fim, essa atitude apenas intensifica todas as forças de atomização que dominam nossa época.”
Aqui está a minha acusação contra a educação sexual brasileira: ela é uma das engrenagens da despolitização nacional. Despolitização no sentido lilleano: a construção de uma militância política histérica, autocentrada e incapaz de costurar os vínculos comunitários e nacionais, impotente na produção da capital moral e simbiose social. Lilla chama isso de pseudopolítica. Parece política, mas não é.
O sexo sem compromisso e o aborto são refugo político da pior espécie. Como se constrói uma sociedade verdadeira com indivíduos autocentrados e narcisistas? É impossível
Por certo não faria sentido nenhum em acusar tão somente a educação sexual escolar de ser culpada da nossa pseudopolítica, e essa não é a minha intenção. Essa pseudopolítica está espalhada por todo o sistema educacional público, no conjunto das práticas pedagógicas, posturas e códigos comportamentais, na sua horizontalidade anti-hierárquica, no divórcio entre pensamento crítico e caráter, no tratamento sentimentalista e hedonista da sexualidade e, agora, no identitarismo político, a fina flor da pseudopolítica moderna. São diversos os contextos educacionais nos quais o jovem brasileiro aprende a pensar em si mesmo em primeiro lugar, a ignorar os pertencimentos, a não se comprometer e a quebrar promessas.
Ora, isso é o que despolitiza. Política é uma arte da convivência e cooperação entre os diferentes. É a construção de limites e de simbiose no lugar da guerra e da indiferença. Mas o sujeito moderno não pertence, não promete, não “morre” em uma escolha moralmente significativa, porque sua autonomia individual está acima de tudo, e ser empoderado é para ele mais importante que ser bom. Esse sujeito se unirá a um coletivo para lutar por seus direitos, mas não saberá viver em comunidade, e muito menos lidar com o dissenso no debate democrático. O sexo sem compromisso e o aborto são isso: refugo político da pior espécie. Como se constrói uma sociedade verdadeira com indivíduos autocentrados e narcisistas? É impossível. Esses indivíduos são o próprio subproduto do sistema. A moralidade sexual progressista, como um todo, é a mais vendida subserviência ao capitalismo de consumo.
Contra o monopólio
No Brasil, o monopólio da escola pública na educação é uma noção muito bem plantada na mente dos cidadãos, que parecem incapazes de pensar em alternativas. E esse monopólio se estende à educação sexual, pensada de forma alienada da sociedade civil e das famílias. Assim, por incrível que pareça, quando alguém sugere que a educação sexual escolar deveria respeitar o pluralismo de valores, dialogar com os pais, e permitir que a visão cristã tradicional de sexualidade tenha igual espaço, lado a lado com visões modernas, imediatamente encontramos rostos preocupados e até reações indignadas. Essas reações são sinais quase infalíveis da mente colonizada pelo estatismo. É uma espécie de síndrome de Estocolmo.
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Uma das objeções mais comuns dessas pessoas é a alegação de que os pais seriam incompetentes ou que seriam abusadores sexuais potenciais. De fato, a maior parcela do abuso sexual infantil acontece em casa, e isso torna a escola indispensável para a identificação e resposta ao abuso. De modo que eu não negaria que a tarefa da educação sexual está além da capacidade de muitos pais, e que nesse sentido a escola seria uma grande aliada. Mas não podemos colocar o carro na frente dos bois: a educação religiosa e moral dos filhos é um direito humano fundamental dos pais.
“Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, artigo 26, parágrafo 3)
“Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.” (Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969, artigo 12, parágrafo 4)
Tenhamos claro, portanto, que, independentemente das capacidades das famílias, seus direitos não podem ser anulados pela escola. É verdade que escolas são uma necessidade e um dever dos Estados; mas as escolas e professores não são os sujeitos dos direitos humanos fundamentais relacionados à educação. Os direitos humanos previstos em 1948 e 1969 são das crianças e dos pais, e por causa deles existem as escolas e os professores.
Talvez a formação do caráter exija mais do que aulas de anatomia, de como fazer sexo seguro e de como respeitar a autonomia do próximo. Talvez a formação sexual exija uma ética de virtudes e promessas, a mesma que foi banida pela educação liberal-progressista
Sem meias palavras, é uma perversidade que a existência de pais e de famílias abusadoras seja invocada para desobrigar a escola de incluir os pais sadios na delimitação do currículo e das estratégias de educação sexual de crianças, e assim roubar os seus direitos. Os pais inocentes não podem ser estereotipificados como abusadores potenciais, e a escola não pode se tornar uma polícia de famílias periféricas. A obrigação do Estado e da escola é a de combater o abuso infantil sem violar os direitos dos pais de regular a educação sexual.
Em todo caso, esse argumento emergiu tardiamente. Já temos educação sexual na escola há algum tempo, e boa parte dos pais abusadores estudou na mesma escola pública que pretende salvar seus filhos. Por que tamanho fracasso? Talvez porque a formação do caráter exija mais do que aulas de anatomia, de como fazer sexo seguro e de como respeitar a autonomia do próximo. Talvez a formação sexual exija uma ética de virtudes e promessas, a mesma que foi banida pela educação liberal-progressista. Ademais, sabemos que muitos comportamentos problemáticos são adquiridos no âmbito da própria escola, mas esse fenômeno nem mesmo recebe o devido tratamento científico, por razões ideológicas.
Eu não sou contra a educação sexual na escola. Sou contra a educação sexual moderna, despolitizadora e antifamília. Sou contra os professores e escolas que se recusam a honrar os direitos humanos fundamentais dos pais, e que não querem incluir suas visões morais no processo educacional. Sou contra o monopólio da elite cosmopolita e a favor do pluralismo de princípios dentro da escola brasileira.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos