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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Agentes virtuosos e seus discursos

(Foto: Dora Mitsonia/Free Images)

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Em sua contribuição da semana passada à nossa coluna, Lucas Nascimento, analista do discurso e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs), introduziu o tema das “virtudes discursivas”, sempre necessárias e ainda mais em tempos de aguda polarização. O tema é urgente. As mídias sociais, abrindo o “microfone” à multidão e democratizando a comunicação pública, reativa e acelerada, oportunizaram uma espécie de escancaramento da nossa falta de moralidade no discurso, na interpelação e no debate.

Em uma democracia plural, é certo que os debates são necessários e inevitáveis. Se queremos, no entanto, promover sua sustentabilidade, é necessário fazê-lo de modo virtuoso, com máximo de comunicabilidade e o mínimo possível de desgaste. No artigo de hoje, Nascimento aprofunda um pouco mais o tema, iluminando a ligação entre palavra e contexto, que torna o discurso uma questão moral, e a natureza prática da virtude discursiva. Boa leitura!

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Há um provérbio em nossa língua que diz: “mais fere a má palavra do que espada afiada”. Mas o que seria capaz de afiar uma palavra a ponto de ela se tornar má e ferir tão profundamente? Quando o empresário Didier Lombard – retomo aqui um exemplo que dei no texto anterior – usa a expressão “moda do suicídio” para se referir aos vários suicídios que estavam acontecendo na França em 2009, podemos nos perguntar: o que faz dessa sentença linguisticamente má? Ou melhor: onde estariam as marcas de um bom ou mau enunciado, de um discurso moral ou imoral que o faria virtuoso ou não? Ora, as marcas éticas não estão imanentes à língua em si mesma, mas numa relação complexa entre linguagem, mente e mundo, o que nos leva a pensar em uma filosofia do discurso e pensar, portanto, o agente como o que produz um discurso virtuoso ajustado aos valores de seu ambiente. Quero neste texto detalhar algumas noções.

Nem tudo o que se diz no espaço religioso é apropriado de se dizer em uma audiência pública no Senado, e vice-versa

Um estudante de 13 anos do colégio de Pont-à-Mousson, de uma pequena cidade francesa, foi suspenso de suas aulas por dois dias e teve de fazer pesquisas sobre o genocídio que matou em torno de 1,5 milhão de pessoas na Armênia no início do século passado. Por quê? Porque ele escreveu em sua lição o seguinte: “O genocídio armênio foi merecido”, e ainda destacou a palavra “merecido” com sublinhado. Embora esse acontecimento tenha ficado no âmbito pessoal, compartilhado por cerca de 15 pessoas, como nos conta Marie-Anne Paveau em Linguagem e moral, há aí uma questão ética, uma vez que implica certos valores daquela sociedade, como tolerância, sinceridade e respeito ao próximo.

Porém, o que há no conteúdo semântico, na articulação sintática ou na escolha lexical que sinalize que se possa vincular essa sentença à ética? Nada. Um “e daí?” de Bolsonaro, um “ainda bem” de Lula, ou o “moda de suicídio” não têm intrinsicamente elementos que apontam a presença de uma avaliação moral no linguístico. No entanto, ao nos depararmos com falas semelhantes às supracitadas, logo dizemos: “não cai bem dizer isso”.

Se o ético não está no linguístico em si, ele se encontra na maneira como o sujeito agente produz certo enunciado em dado ambiente. Para tanto, precisamos compreender como o sentido emerge à mente desse sujeito, e na perspectiva da filosofia do discurso e de uma linguística simétrica propostas por Paveau, sob o viés de um realismo moderado ou de um construtivismo realista, há um continuum entre a cognição interna e externa, ou seja, “a produção dos enunciados se realiza tanto ‘na cabeça’ quanto nos ambientes exteriores humanos e não humanos”. Por exemplo, quando alguém fala “o dia está bonito hoje”, o sentido do dito não está apenas no dispositivo interno da mente de quem diz, mas está também externo à sua mente, distribuído no ambiente, de modo que o dia pode, na verdade, estar “feio” e o enunciado ser uma ironia, cujo sentido pleno se capta pelo céu cinzento, nuvens carregadas e ventos frios.

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Sendo assim, quando dizemos algo, não temos como “pano de fundo” simplesmente um contexto, como se convencionou pensar em certas perspectivas linguísticas, mas um ambiente cognitivo. Este envolve um conjunto de elementos que contribuem para a produção verbal e que também ajudam a construir os enunciados. Paveau os lista como “os agentes humanos em primeiro lugar, mas também os agentes não humanos de linguagem, que podem ser as tecnologias linguísticas (gramáticas, dicionários, listas) e discursivas (conjunto de métodos de produção, difusão, transmissão e modificação desses discursos), os pré-discursos internos e externos e o conjunto dos dados culturais, sociais, históricos, institucionais e morais, também internos e externos”, que ajudam a constituir uma espécie de memória discursiva. Assim, o contexto, agora entendido enquanto ambiente, ao receber contribuições das ciências cognitivas, coopera constitutivamente para a produção dos sentidos possíveis do discurso.

Com um pouco de sabedoria, entendemos que nem tudo o que se diz no espaço religioso é apropriado de se dizer em uma audiência pública no Senado, e vice-versa. Quando alguém compreende que em certo lugar é inapropriado dizer certas coisas, está levando em conta elementos concretos do espaço, mas sobretudo os valores e as normas próprios a esse ambiente. No entanto, é importante deixar claro que essa noção, como parte da integração do ético no linguístico, implica levar em consideração, mesmo sem incorrer em uma visão dicotômica, mais os valores que as normas; até porque, às vezes, não é proibido normativamente dizer certas coisas em determinado espaço, mas pode ferir certos valores implícitos. Nesse sentido é que as virtudes discursivas se filiam não à deontologia (“ética das normas”, a exemplo de Habermas), mas à perspectiva da “ética dos valores” ou à “epistemologia das virtudes”, e lembra-se aqui da filósofa Gertrudre E. M. Anscombe e seu famoso artigo “Modern Moral Philosophy”, de 1958.

Sim, a justiça, a liberdade, a honestidade, a verdade etc. são valores. Estes têm uma realidade tanto objetiva quanto subjetiva, abstrata e concreta, e, embora seja difícil uma definição exata, eles são reais. Por exemplo, podemos discordar do que seja a liberdade, mas dificilmente discordaremos de que exista algo que se chama liberdade, da qual todos desejam gozar em algum nível. Podemos discordar sobre qual seja a “coisa certa” – ou justa – a ser feita para melhorar a vida dos mais pobres, porém dificilmente discordaremos de que exista algo que se chama a coisa certa, e de que é melhor fazer a coisa certa que a coisa errada. Além disso, os valores são subjetivos, já que dão fundamento e se atualizam nas práticas de cada sujeito; e ao mesmo tempo objetivos, uma vez que existem por si e dão validação a juízos de valor.

A virtude discursiva pode ser aprendida e praticada, porque é um saber prático

Ao se levar em conta esse mundo dos valores, pode-se ver que um bom ou um mau enunciado é tanto produzido por sujeitos agentes quanto é respeitante à maneira como ele é “percebido e avaliado como bom/mau” em um dado ambiente. Isso aponta para a plasticidade axiológica e a dinâmica das ressignificações, em que um discurso não virtuoso pode ser transformado por um agente em virtuoso; a exemplo do que foi feito com a palavra nègre (“negro”) na França, em que se inverteu a axiologia negativa, criando-se o termo négritude (“negritude”), dotando “negro” de valores positivos. Ou mesmo o uso do valor insultuoso da palavra queer (“excêntrico”, “ridículo”), em inglês, que foi ressignificada com valor axiológico positivo pela comunidade LGBT.

O olhar para a natureza dos valores implica ainda algo muito importante: a virtude discursiva pode ser aprendida e praticada, porque é um saber prático. Nesse sentido é que se pode falar de agente virtuoso, o qual pode ser educado para uma disposição de caráter que o leva a ser conduzido não necessariamente por normas, mas por uma educação da sensibilidade para produzir discursos virtuosos. Ou seja, como dirá Paveau, “o agente virtuoso é aquele que distingue a virtude e aprende a praticá-la”; ou aquele que, “favorecido por um aprendizado, saberá distinguir os valores em seu ambiente e deles inferir uma prática discursiva virtuosa”.

Alguém poderia adequadamente perguntar: quais são, afinal, especificamente as virtudes discursivas? A proposta de Paveau não contempla certas categorias listadas de virtudes, como se tem, na tradição cristã, as virtudes cardeais e teologais. Isso porque a manifestação da virtude se dá nas disposições dos agentes em produzir discursos co-construídos e ajustados ao seu ambiente. A análise rápida de alguns acontecimentos pode nos ajudar a compreender melhor essa questão e os desajustes.

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O jornalista Hélio Schwartsman, ao escrever em sua coluna na Folha de S.Paulo, em julho de 2020, que “Jair Bolsonaro está com Covid-19. Torço para que o quadro se agrave e ele morra. Nada pessoal”, provoca um acontecimento discursivo moral. E isso se dá porque seus argumentos, mesmo racionalmente fundamentados em certa perspectiva consequencialista – como ele mesmo argumenta: “embora ensinamentos religiosos e éticas deontológicas preconizem que não devemos desejar mal ao próximo, aqueles que abraçam éticas consequencialistas não estão tão amarrados pela moral tradicional” –, estão desajustados aos valores socialmente compartilhados a respeito da pessoa humana, os quais formam a crença moral de que não se deve desejar a morte de ninguém.

A expressão “moda de suicídio”, empregada pelo presidente da France Télécom, é desajustada porque o termo moda denota frivolidade e indecência, desrespeitando a memória discursiva que sinaliza a gravidade dos diversos suicídios. Já a frase escrita pelo estudante francês sobre o genocídio armênio está desajustada quanto às relações entre os agentes, já que fere o valor do respeito à pessoa humana. Assim, ao se associar genocídio e merecido, forma-se um sentido que choca com valores dos direitos humanos e com a memória discursiva do horror daqueles atos genocidas.

Pois bem, se a intenção primeira de Marie-Anne Paveau enquanto analista do discurso é analisar os acontecimentos discursivos morais, e há todo um conjunto de critérios que nós, analistas, adotamos, ela também nos oferece possibilidades de, enquanto indivíduos e sociedade, pensarmos como podemos nos tornar sujeitos discursivamente mais virtuosos. E se “mais fere a má palavra do que espada afiada”, o que afia tão insensivelmente a lâmina da palavra somos nós, ao produzirmos enunciados carentes de mediania discursiva e, portanto, desajustados aos outros sujeitos e aos valores compartilhados em seu ambiente. Sim, é verdade, não é fácil, mas podemos ser mais virtuosos. Precisamos!

Lucas Nascimento é analista do discurso, com mestrado em Estudo de Linguagens (Uneb) e doutorado em Língua e Cultura (UFBA). É professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (PPGEL/UEFS). Twitter: @lunascimentos

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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