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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Natureza ou criação?

Ali onde o mundo começa

(Foto: Bishnu Sarangi/Pixabay)

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Pelas paredes de vidro do meu escritório eu contemplo uma pequena parte da propriedade de L’Abri; um jardim privativo, ou o que deveria ser um jardim, já que o caos tomou o controle da coisa. Os últimos meses foram frenéticos e nossos projetos de jardinagem estão em plena recessão, impiedosamente sequestrados pela mãe natureza.

Não absolutamente, devo dizer; as marcas do nosso projeto estão lá, mas evidentemente derrotadas. O gramado daqui quase desapareceu, ao contrário do tapete verdinho, ao sul da propriedade, mas isso estava nos planos – as árvores no local sufocam as folhinhas da esmeralda. O problema é que as alternativas de cobertura vegetal morreram sem ver a luz, no ventre do planejamento. A horta suspensa que construí a duras penas com a ajuda do genro não produz tomates desde o fim do ano passado, um testemunho de meus fracassos agrícolas.

Mas a tumbérgia não deixou o lugar sem vida; subiu pelos muros, pela tela de arame que levantamos para aumentá-los, saltou selvagemente sobre a mangueira e se tornou indistinguível da árvore. Se não resolvermos isso até as chuvas de outubro irá certamente matá-la; fez jus ao sobrenome, a trepadeira! Está linda, com suas pequenas flores azuladas pontilhando a parede verde, e provavelmente chateando meu vizinho com uma profusão de folhas secas. Bela, natural e selvagem.

Não posso evitar minha humanidade em meus tratos com a natureza, nem pode a natureza ser mais que é quando responde a mim

Derrotado, ainda que não totalmente, lembro-me de que não posso de fato alterar a natureza, mas apenas cavalgá-la com minhas ideias, e por um breve tempo. Sua força é a mesma, bela, selvagem, alheia a meus esforços para domá-la. Até mesmo quando é domada, temporariamente, nada sabe sobre isso e desconhece as leis da jardinagem amadora, ou de qualquer jardinagem humana. O que faço, por outro lado, pode ou não lhe fazer bem. Posso negá-la, matá-la, ou deixá-la correr livre, selvagemente, mesmo que a mangueira sufoque a grama e a tumbérgia sufoque a mangueira.

É claro que o fim que controla minhas decisões, num jardim, é estético; trata-se de beleza e de frescor, não tanto do destino eterno dessa tumbérgia bonita, gulosa e pecadora, ou de suas vinganças em favor do antigo gramado, que Deus o tenha. Os preceitos da beleza ferroam a minha consciência, e me impõem essa inescapável obrigação de dar um jeito no jardim, de impor sobre ele a ordem e a justiça, e sem matar a trepadeira rebelde. Assim que houver tempo e dinheiro para tanto, naturalmente.

Não posso evitar minha humanidade em meus tratos com a natureza, nem pode a natureza ser mais que é quando responde a mim. A ilusão toda é pensar que nossa transcendência em relação a ela seja completa, consumada; como se fôssemos só eu e essa outra coisa, a “natureza” – como se eu mesmo não fosse feito de terra, tanto quanto aquela tumbérgia. Como se minhas próprias razões para frustrar sua vingança vegetal contra a mangueira grande não fossem, também, naturais. Humanamente naturais.

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Mas se eu for apenas natureza, como toda a natureza, sou apenas isso que sou, e não “devo” ser nada mais. Dever é coisa de “não natureza”, de liberdade, de anjos. E é por isso que, para muitos, nós somos apenas pragas, trepadeiras que ameaçam a biosfera terrestre, riscos biológicos – do ponto de vista do resto do planeta, é claro.

Aqui o mundo se divide entre coerentes e incoerentes; na ontologia da realidade, a mente de ambientalistas radicais e ecoterroristas não se distancia muito do laissez-faire cínico de quem gostaria de abolir as normas do bem e coroar o regime da força bruta, seja na forma sofisticada de um Spencer, seja na forma cruenta de um Marquês de Sade. Em ambos os casos, o ser humano não tem nada de especial, e seria ingenuidade infantil acreditar em contos de fadas como a “dignidade da pessoa humana”, para além de seus usos sentimentais e retóricos. Em ambos os casos, abortos são fatos da natureza. E os gambazinhos de Lagoa Santa, por que seriam menos dignos que o ser humano?

Mas daí em diante os caminhos se partem. O laissez-faire naturalista abraça consistentemente o culto do poder e do prazer, e muitos o fazem sem dar a mínima para as justificativas eruditas como o darwinismo social, apenas sentindo que a natureza deve reinar absoluta – especialmente quando o fizer através de mim. Enquanto isso, a outra metade dos naturalistas se encastela numa incompreensível fortaleza moral, erguida com pedras roubadas da catedral cristã, para tutelar a natureza com discursos de conservação, preservação, sustentabilidade, deveres humanos para o com o planeta, amor às criaturas. Carecendo de uma argamassa metafísica para unir essas pedras, resta-lhe um argumento bastante pragmático, ao menos: “temos de fazer isso, ou vamos todos morrer!”

Na ontologia da realidade, a mente de ambientalistas radicais e ecoterroristas não se distancia muito do laissez-faire cínico de quem gostaria de abolir as normas do bem e coroar o regime da força bruta

Mas é mentira, claro. Quem vai morrer serão nossos netos ou bisnetos, e daí pra frente. E que deveres teria eu com as gerações futuras? Isso ou é sentimentalismo ou é cristianismo inconfesso, envergonhado, amordaçado e escondido no porão; é metafísica de armário.

No mundo mais amplo, não são só as normas da beleza que me espezinham a consciência. No jardim sei que a tumbérgia azul precisa ser contida, mas essas são as normas da casa. Para além dela, outros deveres perseguem os humanos, de preservar a vida e o futuro da Thubergia grandiflora em seu bioma original, de cuidar dos seres vivos, de proteger espécies em risco, de não impor sofrimento a seres sencientes, de não ser uma praga planetária, de não sufocar a vida não humana.

Não podemos cuidar do mundo exatamente do mesmo jeito que cuidamos de nossos jardins, concedo; o jardim é uma síntese de natureza e liberdade, uma coisa de gente mesmo. Mas não posso ignorar a selva no coração do jardim, e essa é precisamente a forma correta de pensar o mundo humano: não é uma selva nem uma flor de plástico, mas um jardim, uma síntese, uma tarefa de cultivar e guardar.

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Se é verdade que sou também natureza, sou ainda mais do que isso, e esse ponto de transcendência é o que ilumina meus deveres com a natureza, como um todo, e com a minha própria natureza humana. Mas há um mistério aqui: a natureza não impõe deveres, mas apenas necessidades; a liberdade tampouco os impõe, apresentando apenas possibilidades. Nem a natureza nem a liberdade são suficientes para fundamentar deveres e, no entanto, sabemos desde os ossos que esses deveres existem, tão logo olhamos nas faces uns dos outros.

Essa existência entre a natureza e a liberdade sob o chamado que nos alcança é o que nos torna Homo respondens. E a voz divina que me interpela me faz saber que devo escolher, livremente, cuidar da natureza e do meu próximo. E é assim que o ser humano se torna esse monstro milagroso, o ser respondente, unido à sua irmã natureza e unido a seu irmão divino, o verbo encarnado. Ele é criado e criativo, ou um cocriador criado; ele recebe como dádiva a sua natureza, mas também a estabelece, quando recusa ser mero escravo dela, e se torna seu intérprete e cuidador, a imagem natural de uma Origem extranatural.

Há poucos dias li uma notícia sobre a autorização do registro de nascimento com “sexo não especificado” no Brasil; não chega a ser novidade, já que o assunto vem se desenrolando há anos. A requalificação civil, não apenas para os gêneros masculino e feminino, mas também para os “não binaries”, que não teriam gênero definido, vem sendo progressivamente facilitada por todo o país. Em algum momento, com base na liberdade dos pais de educar seus filhos segundo suas crenças morais religiosas, segundo é exigido por muitas cartas modernas de direitos humanos, os pais não precisarão definir o sexo dos filhos no registro de nascimento, não apenas nos casos de indefinição biológica (os intersexos), mas em qualquer caso. Os filhes serão registrados com sexo não especificado, porque ele poderia ser especificado posteriormente, evitando-se assim interferir na autenticidade da criança em formação.

A natureza não impõe deveres, mas apenas necessidades; a liberdade tampouco os impõe, apresentando apenas possibilidades

O que esse tipo de movimento representa? Alguns, mais conservadores, veriam nele uma ausência de ordem e de cultura, com a natureza deixada livre se impondo sobre o mundo dos valores; uma grande libertinagem. Mas isso me parece realmente impossível. O livre curso da natureza era a ordem patriarcal anterior, que se valia da vontade de poder e da força da fertilidade; basta ler um pouco de Gilberto Freyre para dispersar qualquer dúvida sobre a força da natureza na sociedade patriarcal. Essa ordem está, agora, em seu ocaso.

Mas isso não me deixa nem um pouco confortável. O excesso da cultura, cerceando a ordem natural e torcendo-a para tornar-se outra coisa, zombando do transfundo darwiniano do planeta, igualando as confusões identitárias de artistas e adolescentes modernos com os mecanismos de reprodução sexuada da espécie humana, me parece puro angelismo. Como se não fôssemos feitos de terra; a mesma terra dos bichos e das trepadeiras. Vejo, de algum modo, semelhanças entre essa evasão da nossa biologia e os sonhos de construir colônias no espaço, quando nos libertarmos do planeta Terra. Voar do corpo e voar pelas galáxias; não pode ser mera coincidência que a mesma civilização sonhe esses dois sonhos ao mesmo tempo.

Esse angelismo é, num sentido, uma anticultura, como notou Patrick Deneen. Pois, para termos absoluta liberdade, é preciso desmantelar o que impede a expressão autêntica do indivíduo, e cultura é isso, um conjunto de estradas simbólicas e comportamentais que organizam a vida social humana. Se acabamos com todos os caminhos estereotipados e pré-estabelecidos, o que temos é a selva, o estado de natureza. Daí sua visão, herdeira nisso de Robert Nisbet, de que o “Leviatã” de Thomas Hobbes apresenta uma imagem invertida: o liberalismo não nasceu de um pacto que acabou com o estado de natureza, do homem-lobo-do-homem, mas antes imagina a sociedade como se feita de lobos policiados pelo Estado; e assim, imaginando e educando os homens, o liberalismo cria esse estado de natureza. O Leviatã não é uma genealogia, mas uma escatologia da sociedade moderna.

Deus plantou o ser humano num jardim, do qual ele foi expulso. Não será isso o que mais precisamos em nossas aporias civilizacionais, de mais jardins? Ou melhor, de mais jardinagem moral?

Mas talvez isso seja um pouco exagerado; o que nossa sociedade faz, hoje, não é tanto organizar a natureza diferentemente, mas subjugá-la quase inteiramente. Se ela é uma anticultura em relação à cultura judaico-cristã, é também, por outro lado, uma ultracultura, em relação à natureza. Ela tenta substituir a criação por um mundo plástico, uma civilização descolada de suas raízes, ignorante de sua criaturidade, dessincronizada com a natureza e baseada em normas idealizadas, angelistas. O resultado é cruel e predatório para o meio ambiente, para a ecologia social, para a vida sexual, para o corpo dos adolescentes, para o nascituro. Tecnicismo, crise ambiental e a esperança transumanista são testemunhos desse angelismo.

Deixei a porteira aberta de propósito e a teologia entrou na conversa: seria “criação” uma palavra melhor do que “natureza”? Sim, sob alguns aspectos; admitir um fiat divino fecha a equação de nossa estrutura respondente, esclarece os engates entre a natureza e a liberdade, ilumina o mistério do dever. E falar em jardins é falar em teologia; Deus plantou o ser humano num jardim, do qual ele foi expulso. Não será isso o que mais precisamos em nossas aporias civilizacionais, de mais jardins? Ou melhor, de mais jardinagem moral? Se houver uma alternativa entre a selvageria patriarcal e a ultracultura pós-moderna, será certamente algum tipo de jardinagem moral, uma integração criativa do que somos e do que queremos ser, sem termos de amputar partes de nós nem fabricar identidades de plástico.

A despeito da névoa da mente moderna, a forma do real permanece acessível, e sua visão pode se abrir para qualquer um, a qualquer momento, e sem aviso. Pelas paredes de vidro do meu escritório eu contemplo o começo do mundo, e o que vejo ali, onde o mundo começa, é o que está em todo o lugar, até nos rostos e corpos das pessoas. E somente nesse jardim, onde tudo termina e começa de novo, natureza e a liberdade finalmente irão se beijar.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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