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Como aconteceu no movimento Diretas Já, é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum. Esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia. (Manifesto “Estamos #Juntos”, 29 de maio de 2020)
O tema do bem comum anda em alta. Ou quase; em fins de maio o manifesto #juntos foi lançado com 6 mil assinaturas de personalidades de esquerda, de centro e de direita defendendo um acordo nacional ao redor do bem comum. Eu assinei também, mais tarde, embora – confesso – com pouco entusiasmo, ao ver na lista nomes que dificilmente teriam qualquer pista sobre a natureza do “bem comum”. O manifesto ganhou certa notoriedade inicial e depois desapareceu das vistas, submerso pelas ansiedades sanitárias e sob as águas turvas da agenda política nacional, com o presidente Bolsonaro e imprensa esforçando-se ao máximo para não deixar o lodo assentar-se. O manifesto já conta hoje com mais de 280 mil assinantes, mas sua influência ainda é incerta.
Para Robert Reich, o comportamento abusivo de autoridades do Estado e do mercado minou a confiança dos cidadãos, por um lado, e produziu pobreza e concentração de renda, por outro
Deixando de lado a questão da eficácia do manifesto, a sua pertinência me parece indubitável. Penso que a publicação da encíclica Fratelli tutti poucos meses depois reforça a percepção de que algo precisa ser feito diante da ruptura do tecido social em nossas sociedades democráticas, e que a política tradicional não está ajudando a promover o bem comum.
Seria ingenuidade, no entanto, esperar que essa mesma política tradicional não estenda também as suas garras sobre o conceito de “bem comum”. Não é um campo de consenso; há debates filosóficos, éticos e ideológicos ao redor dele, e ao menos uma divergência muito importante precisa ser conhecida por todos os que se sentem inspirados pela ideia de bem comum.
A primeira história: elites corruptas, sistema corrupto
Os que se aproximaram da questão “pela esquerda” certamente já ouviram sobre a força maléfica do “neoliberalismo” sendo culpada pela ruína social contemporânea. Ou, ao menos, o compromisso com um Estado mínimo e o mercado livre, o que deixaria à míngua o cidadão comum.
Em 2018, na onda das tentativas de explicar a inundação neoconservadora, Robert Reich, professor de Política Pública da Universidade da Califórnia em Berkeley, publicou o best-seller O Bem Comum. Reich é um autor prolífico e um influenciador popular, com mais de 1 milhão de seguidores no Twitter e a metralhadora anti-Trump continuamente fervendo – logo na introdução ele lamenta emotivamente a presidência dos EUA. Mas o livro não é um libelo partidário; é uma honesta interpretação da crise do bem comum no país.
E Reich nos oferece uma narrativa: depois de contar o caso do inescrupuloso empresário e investidor Martin Shkreli, que ganhou muito dinheiro manipulando pessoas, preços e o mercado, e que acabou na cadeia, ele dirige a sua carga à visão de mundo libertária, exemplificada por Ayn Rand e, de forma mais sofisticada e atual, pelo filósofo de Harvard Robert Nozick. Reich procura mostrar que a visão atomizada do ser humano promovida por esse movimento – segundo o qual os direitos individuais são o único fato moral sólido da “sociedade”, não existindo o “bem comum” – seria, na prática, uma ferramenta ideológica para manipular o cidadão e arrancar impostos.
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Essa concepção conservadora-libertária teria sido formativa para toda uma geração de republicanos interessados em desregulamentar a economia, favorecer a elite econômica e frear todo tipo de articulação social de inclusão, culminando com o trumpismo. Nomes importantes do seu governo, como Mike Pompeo, teriam lido Ayn Rand. O resultado seria um establishment governamental feito de cinismo, mentiras e desinteresse pelo bem de todos.
A posição ideológica de Reich é muito clara: para ele “o governo não ‘intervém’ no mercado; ele cria o mercado”. Tenho certeza de que um professor universitário e escritor tão importante deve ter excelentes explicações teoréticas para escrever tal absurdidade, e grandes esquemas teóricos realmente mudam o sentido das palavras. Com tal perspectiva, é evidente que o bem comum, em sua perspectiva, também é criado de cima para baixo, por meio de nossos sistemas de governança.
E é assim que, apesar de admitir o longo processo de constituição da ideia de bem comum, incluindo o próprio cristianismo, ele identificará na história americana recente uma série de três fenômenos – três “terremotos” morais sofridos pelos EUA – que teriam arruinado a cultura política do bem comum: o caso Watergate; o pragmatismo predatório que se instalou no mundo corporativo nos anos 1980, absolutizando o lucro sobre tudo; e a superproteção legal a práticas abusivas de Wall Street a partir dos anos 1970. Nos três casos, a confiança do cidadão teria sido explorada de forma inescrupulosa com a finalidade de proteger interesses privados. Afirma ele: “Como resultado, as instituições políticas e econômicas de nossa sociedade – partidos políticos, corporações, e o livre mercado – abandonaram seus compromissos com o bem comum. A consequência tem sido uma catástrofe para a maioria dos americanos”.
Com salários mais baixos, mais pobreza e mais horas de trabalho, temos mais uso de drogas, mais divórcio, mais doenças mentais etc.
Chamo a atenção do leitor aqui para a lógica explanatória de Reich. O comportamento abusivo de autoridades do Estado e do mercado minou a confiança dos cidadãos, por um lado, e produziu pobreza e concentração de renda, por outro; e isso teria sido a principal causa do enfraquecimento do tecido social. Faz algum sentido, sim; com salários mais baixos, mais pobreza e mais horas de trabalho, temos mais uso de drogas, mais divórcio, mais doenças mentais etc. E o mau exemplo das autoridades mina os ânimos.
A interpretação conservadora dirá, naturalmente, que foi a crise dos costumes o que provocou a perda de capitais sociais e do sentido de bem comum; mas Reich permanece cético a respeito disso:
Em seu livro de 2012, Coming Apart, o sociólogo Charles Murray, o queridinho dos intelectuais conservadores, atribuiu a queda da classe trabalhadora americana branca ao que Murray descreveu como a sua perda dos valores tradicionais da diligência e do trabalho duro. Ele argumentou que ela criou seus próprios problemas se viciando em drogas, evitando se casar, tendo filhos fora do casamento, abandonando a escola e ficando sem trabalhar por longos períodos de tempo. O governo ajudou a induzir seu declínio, argumenta ele, proporcionando ajudas que encorajam essas patologias.
Murray e outros de sua laia parecem não ter notado que, como tenho dito, os salários da classe trabalhadora branca se estagnaram ou declinaram nos últimos 40 anos, empregos estáveis antes disponíveis desapareceram, a base econômica de suas comunidades se deteriorou, e sua participação no rendimento e na riqueza nacional encolheu dramaticamente. Parece muito mais provável que essas sejam as fontes subjacentes das patologias sociais que Murray relata, e que a drogadição, gravidez fora do casamento, carência educacional e desemprego sejam seus sintomas...
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O raciocínio de Reich faz sentido, evidentemente. Não podemos minimizar o impacto que a pobreza pode ter sobre os costumes e modos de vida. Mas é impossível não notar o modelo reducionista de explanação do escritor. Nota-se que, para ele, a cultura é absolutamente passiva no sentido comportamental, ao mesmo tempo em que os processos políticos e econômicos são absolutamente ativos. De modo que os valores, hábitos morais e práticas sociais parecem ser apenas efeitos de processos macroestruturais. Dá certa preguiça; é aquele velho problema da mente de esquerda.
Não é que a moral não tenha influência nenhuma, mas tão somente a moral dos gestores políticos e econômicos, quando ela abraça uma falsa economia política e assim interfere na gestão da sociedade favorecendo processos de desigualdade. Nessa perspectiva o bem comum parece ser, em grande medida, um produto da boa atividade governamental.
A segunda história: pseudopolítica
Não vamos gastar muito tempo expondo a história alternativa, que já exploramos diversas vezes em nossa coluna, e especialmente ao discutir por que a fraternidade importa, mas os fatos básicos merecem ser relembrados: pouco antes de Reich lançar seu best-seller, o ensaísta e professor da Universidade de Columbia Mark Lilla escreveu dois artigos para o New York Times que, reunidos num pequeno livro, se tornariam outro best-seller: O Progressista de Ontem e o de Amanhã (The Once and Future Liberal).
No livrinho, Lilla conta uma história significativamente diferente; ele concorda até certo ponto com a linha de análise de Reich. Em vez de buscar no pensamento de Ayn Rand o pecado original, examina diretamente seus frutos na ascensão do pensamento neoliberal, representado por Ronald Reagan – e, no Reino Unido, pelo thatcherismo. Lilla pinta Reagan como a epítome da antipolítica, alimentando-se dos ressentimentos das massas contra o Estado, e conduzindo a América a uma vitoriosa marcha pela afirmação das liberdades individuais.
Na cosmovisão do Self, a ordem jurídica, moral, social e econômica pode e deve ser refeita de modo a maximizar a busca da felicidade individual. É claro que o efeito disso é a perda do tecido social
Mas então Reich e Lilla tomam caminhos distintos, quando este último julga a estratégia adotada pelos democratas e pela esquerda para enfrentar a antipolítica conservadora-libertária. Segundo Lilla, os democratas absorveram o estilo individualista da antipolítica reaganista, refundiram-no com as nascentes políticas identitárias, e criaram um monstrengo que não atinge nem um objetivo nem outro: essa nova criatura é impiedosamente classificada por Lilla como uma pseudopolítica.
O traço principal da pseudopolítica identitária seria uma profunda introversão psíquica e moral. Lilla a chama mesmo de psicológica; seu foco é a autoidentificação e a autoexpressão identitária, em busca de afirmação emocional e bem-estar. Uma forma de política desinteressada no bem comum, ocupada com lutas tribais, acusações e autovalidação.
Embora Mark Lilla professe com firmeza a fé democrata, nunca mais arredou o pé de sua crítica e, se não se tornou um pária, está próximo de sê-lo. Num artigo do The Guardian de 2017, foi descrito como “o liberal com mais inimigos na esquerda que na direita”. Pouco antes de as eleições presidenciais dos EUA indicarem a vitória de Biden, Lilla estava ainda lançando seus libelos contra os colegas democratas (“Quando meus colegas liberais aprenderão?”), e sendo – como ocorreu durante todo o reinado de Trump – solenemente ignorado.
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A hipótese de Mark Lilla alcança o âmago da questão – o impacto destrutivo do processo de “centramento subjetivo” (nas palavras de Charles Taylor) da mente e da moralidade moderna, que desembocou num paradigma de constituição moral narcisista, às vezes descrito como um “individualismo expressivo”. Nessa cosmovisão do Self, a autoexpressão e autoatualização são prioritárias para a felicidade individual, e a ordem jurídica, moral, social e econômica pode e deve ser refeita de modo a maximizar essa busca da felicidade individual.
É claro que o efeito disso é a perda do tecido social. A pessoas passam a ter relações cada vez mais líquidas, regidas por regras de interesse localizado e contratos, sem experiências de devoção, de compromisso de longo prazo, de autossacrifício e de trabalho em equipe. Exatamente o que vem sendo descrito por nomes como Robert Putnam como a crise do “nós” que sempre foi uma grande força da cultura norte-americana.
O próprio Mark Lilla não cruza o Rubicão para admitir que a moralidade do individualismo expressivo teria grande responsabilidade nos problemas que Robert Reich quer lançar na conta da administração pública: drogadição, sexo ocasional e gravidez fora do casamento, empobrecimento familiar, desinteresse pelo trabalho, pelo empreendedorismo e pelo associativismo etc.
Quem está certo?
Aparentemente ambos estão errados. Alinho-me, aqui, com Patrick Deenen, para quem a culpa recai sobre um mesmo “criminoso”, oculto nas sombras. O gatuno não é nem o Partido Democrata, nem o Republicano. Trata-se, antes, da ideologia liberal, com sua concepção distorcida de liberdade, manifestando-se tanto no reaganismo e no estilo egoísta de política que encontrou sua epítome em Donald Trump, por um lado, quanto na praga das políticas identitárias, das quais o Partido Democrata aparentemente está além de qualquer cura.
Devo admitir que Lilla chega perto disso, ao notar a raiz comum. Mas ele parece acreditar que o bom e puro Partido Democrata foi corrompido pelo individualismo reaganista. Isso é incrivelmente ingênuo; mas ele provavelmente tem uma visão mais nuançada, e limitou-se a apontar a semelhança ideológica para fazer seu ponto e sua provocação.
Mais duas histórias
Eu já relatei em outro artigo nessa coluna (“Sem comunidade não há fraternidade”) a curiosa experiência que tive ao fim do ano passado, quando era ainda diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos, servido com a ministra Damares Alves. Fui ao Senado, a convite do senador Paulo Paim, que me pareceu um homem sério e amável, para representar o governo numa audiência pública sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Relatei minha defesa do princípio da fraternidade e de sua importância para a política hoje, e como fui rechaçado por jovens militantes à mesa. Em sua mente a revolução não permitia perder tempo com a fraternidade, ainda que ela fosse um dos princípios fundadores da DUDH de 1948.
A experiência foi realmente curiosa, exemplificando de forma muito prática os reclames de Mark Lilla sobre a má vontade da militância identitária para até mesmo imaginar trabalhos de cooperação com gente da qual eles discordam. Naquele momento ficou ainda mais claro para mim que bolsonaristas e identitaristas são, no extremo, farinha do mesmo saco.
Os dois polos de nossas atuais guerras políticas são, no extremo, farinha do mesmo saco; não têm respostas para o problema do esgarçamento de nosso tecido social
Mas tenho outra história para contar, bem mais interessante. Em 2007, quando na Holanda, fui apresentado pelo senador Egbert Schuurman, à época aposentando-se de sua atividade acadêmica na Universidade de Wageningen, a Paul Baan, ex-diretor de uma próspera firma que envolvia pesquisa médica e investimentos e, então, de uma fundação que fazia investimentos sociais. À época eu estava atrás de investimento para um empreendimento social no qual Schuurman tinha interesse pessoal, e fui educadamente recebido por Baan. O homem ouviu com paciência de monge a minha ladainha e respondeu com todo o jeito: “Infelizmente não podemos ajudar você”. Perguntei: “Posso saber por quê?”
Ele respondeu. “Claro. Vou contar uma história. Alguns anos atrás eu tive uma importante reunião de negócios com os maiores empreiteiros brasileiros. Não me lembro bem dos nomes, mas eram os maiores. Eu desci no aeroporto, de lá peguei um helicóptero e desci num prédio daquela grande cidade. São Paulo! Como é grande aquilo!”
“Sim, acho que sei de onde você está falando. Avenida Brasil.”
“Isso! Pois bem. Lá tivemos essa reunião, com os maiores. E depois tivemos um momento para conversar mais relaxadamente e beber alguma coisa. Então eu perguntei a eles sobre o que faziam em termos de investimento social.” A essa altura eu já estava me afundando na poltrona do belo escritório de Baan.
“E sabe o que eles fizeram?”
“Não”, respondi engolindo em seco.
“Caíram na gargalhada! E me responderam que isso era problema do governo. Problema do governo. Você acredita nisso?”
“Claro...” (eu ria de nervoso).
“Pois bem; depois disso me reuni com a diretoria da Noaber Foundation e decidimos que nunca mais financiaríamos projetos sociais no Brasil. Porque existe dinheiro no seu país, e muito, mas os grandes não querem investir. Então é isso. Me desculpe, mas infelizmente não podemos ajudar.”
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Não preciso dizer que, pouco tempo depois, alguns dos maiores empreiteiros brasileiros seriam presos no processo do petrolão – suspeito eu que os mesmos conhecidos de Baan. Seu comportamento era precisamente o mesmo de Martin Shkeli, o paradigma do empresário-predador exposto por Robert Reich.
Quem está errado?
Em conclusão, eu diria que as histórias de Reich e de Lilla têm, ambas, elementos de verdade, enfim. É verdade que o desinteresse pelo bem comum entre as elites significa danos estruturais à economia, ao governo e à sociedade. É verdade que a concentração de riqueza facilita a dissolução do tecido social. É verdade que o mau exemplo de governantes e empresários corrompe o caráter nacional.
E também é verdade que o narcisismo de elites predatórias é um parente de sangue do individualismo expressivo e do estilo de política agressivo, tribalizado e incapaz de compreender o bem comum que a esquerda promove contemporaneamente. As fontes espirituais dessas moralidades políticas são as mesmas.
Uma política da fraternidade e do bem comum será, necessariamente, uma terceira via
Os dois polos de nossas atuais guerras políticas são, no extremo, farinha do mesmo saco; não têm respostas para o problema do esgarçamento de nosso tecido social. Ambos estão infectados com a ideia contraditória de liberdade dos modernos. Enquanto isso não for enfrentado, com arrependimentos mais radicais do que manifestos como o #juntos, não iremos muito longe.
Uma política da fraternidade e do bem comum será, necessariamente, uma terceira via. Não uma terceira via em termos de economia política, exatamente, mas de moralidade pessoal e comunitária. E sim: ela será, no espírito, cristã.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos