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“Se os governos não se empenharem mais adequadamente pela coesão e unidade de uma comunidade política, o fundamento da confiança em uma sociedade é afetado. A ordem jurídica, então, terá que absorver o que a sociedade não pode mais endireitar. Isso é o que se tornou a ameaça das sociedades pós-modernas.” (Roel Kuiper)
A direita liberal se ocupa hoje da liberdade; a esquerda, da igualdade. Mas quem cuida da fraternidade?
Ela segue hoje amplamente ignorada no grande debate público, quando não é confundida com outros princípios. Frequentemente é absorvida pela igualdade ou caricaturada por coletivismos nacionalistas. Ultraconservadores zombam dela, como se fosse coisa de comunistas. A coesão da comunidade política e a promoção da confiança entre as pessoas dificilmente ocupam o topo das agendas políticas contemporâneas.
Mas fraternidade é assunto público e político; é assunto de direitos humanos e assunto da fé cristã. É assunto de Estado, dado que sua ausência coloca sobre ele uma carga insuportável e faz a máquina da democracia emperrar.
Os deveres comunitários e da fraternidade não têm recebido a devida atenção, e tal falha tem relação com a história política da modernidade
Boa parte da direita brasileira zombou da encíclica Fratelli tutti. A esquerda a ignorou. Mas, mesmo que se discorde em algo da formulação do papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti seu insight foi certeiro: não sairemos do atual impasse civilizatório sem o terceiro princípio.
Já apresentamos nessa coluna um artigo com uma discussão preliminar da encíclica do papa, e também uma reflexão sobre a fraternidade e a crise de confiança nas sociedades modernas. No artigo de hoje vamos considerar com mais cuidado o “princípio perdido” e onde podemos encontrá-lo.
O princípio perdido
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH) menciona explicitamente, em seu artigo 1.°, não apenas a liberdade e a igualdade, mas também a universalidade da razão e da consciência, e um dever específico e muito bem determinado; e o artigo 29 menciona igualmente um conjunto de deveres:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e têm o dever de agir em relação uns aos outros em espírito de fraternidade.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, artigo 1)
“Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível.” (artigo 29)
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Como se vê de forma límpida, o Sistema de Direitos tem, como sua “moldura” e laço estruturante, o aprendizado dos deveres comunitários, e particularmente o dever da fraternidade. Não pode ser demasiadamente enfatizado, no entanto, que os deveres comunitários e da fraternidade não têm recebido a devida atenção, e tal falha tem relação com a história política da modernidade, como observou Reynaldo Soares da Fonseca em sua obra O princípio da fraternidade, lançada no ano passado:
“Com o advento da revolução de 1789, a fraternidade é colocada como elemento conectivo entre a liberdade e a igualdade, distinguindo-se destes dois por sua peculiar fundação relacional em favor de um projeto moderno de sociedade. Pouco tempo depois do referido movimento, a categoria fraternal do tripé republicano recai em desuso, ao contrário das expressões do binômio entre liberdade e igualdade, passíveis de expressão como princípios constitucionais e diretrizes de movimentos políticos, progressivamente antagônico a partir de sistemas de produção e governo, ou mesmo visões de sociedade, tal como a Guerra Fria exemplificou.”
Segundo a precisa observação do magistrado, a polarização entre liberdade e igualdade penetra o século 20 manifestando-se como um conflito entre liberdades individuais, promovidas principalmente pelo sistema de produção capitalista e a ênfase na iniciativa e na escolha, e o Estado com seus esforços distributivos em nome da igualdade.
O princípio da fraternidade não é primariamente um direito, mas um dever, estando muito mais relacionado ao significado das demandas comunitárias da personalidade humana
Dessa realidade emergiu a narrativa das “gerações” dos direitos, sendo a primeira geração a das liberdades civis fundamentais, e a segunda geração os direitos sociais e econômicos. As dificuldades de integração desses dois blocos de direitos/princípios culminariam com a Guerra Fria e a oposição entre os sistemas capitalista e socialista.
Com a queda do Muro de Berlim, em 1989, nasceram grandes esperanças de superação dessa bipolaridade, realizando-se em 1993 a Conferência de Viena, na qual buscou-se sepultar o dualismo entre liberdades civis fundamentais e direitos econômicos, sociais e culturais. A Declaração de Viena afirma que os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes, e teve profunda influência no desenvolvimento dos Planos Nacionais de Direitos Humanos no Brasil, a partir da iniciativa pioneira do presidente Fernando Henrique Cardoso. Assim, como se lê na introdução do PNDH-2 (1999), na edição de 2002:
“Ao adotar, em 13 de maio de 1996, O Programa Nacional de Direitos Humanos, o Brasil se tornou um dos primeiros países do mundo a cumprir recomendação específica da Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993), atribuindo ineditamente aos direitos humanos o status de política pública governamental... O processo de revisão do PNDH constitui um novo marco na promoção e proteção dos direitos humanos no país, ao elevar os direitos econômicos, sociais e culturais ao mesmo patamar de importância dos direitos civis e políticos, atendendo a reinvindicação formulada pela sociedade civil por ocasião da IV Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 13 e 14 de maio de 1999 na Câmara dos Deputados, em Brasília.
A atualização do Programa Nacional oferece ao governo e à sociedade brasileira a oportunidade de fazer um balanço dos progressos alcançados desde 1996... A inclusão dos direitos econômicos, sociais e culturais, de forma consentânea com a noção de indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos expressa na Declaração e Programa de Ação de Viena (1993), orientou-se pelos parâmetros definidos na Constituição Federal de 1988...”
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Como se vê, o debate sobre como relacionar liberdade e igualdade alcançou grande ressonância, sendo perceptível na fase mais importante do processo de institucionalização dos Direitos Humanos no Brasil. Mas e quanto ao princípio da fraternidade?
Karel Vasak propôs, em 1979, uma periodização da evolução dos Direitos Humanos, defendendo que estaríamos desde então na “terceira geração”, focada no “princípio da fraternidade”. A “terceira geração” dos Direitos Humanos estaria associada aos chamados “direitos difusos” e também aos direitos de solidariedade; segundo alguns, teria sua mais recente materialização nos esforços de inclusão de pessoas e grupos marginalizados. Essa narrativa tem certa plausibilidade, tendo em vista, inclusive, que o PNDH-3, no caso brasileiro, introduziu um grande reforço aos temas da diversidade e da inclusão.
As políticas de inclusão centradas na afirmação de identidades individuais têm claro foco nas liberdades e igualdades, e têm produzido o efeito precisamente oposto ao que se entende por fraternidade
É inevitável considerar, no entanto, que nessa interpretação o princípio da fraternidade é relido como se fora um conjunto de direitos, quando na verdade ele não é primariamente um direito, mas um dever, estando muito mais relacionado ao significado das demandas comunitárias da personalidade humana.
Além disso, considerando as evidências já discutidas no princípio da nossa justificativa, parece evidente que as políticas de inclusão centradas na afirmação de identidades individuais têm claro foco nas liberdades e igualdades, e têm produzido o efeito precisamente oposto ao que se entende por fraternidade.
Caberia aqui uma evidência anedótica: no ano passado, quando ainda diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no governo, tive a oportunidade de participar de uma audiência pública da Comissão de Direitos Humanos do Senado, no aniversário da DUDH, no dia 10 de dezembro de 2019, e lá expus minha compreensão sobre a importância do princípio da fraternidade. Os meus interlocutores, todos comprometidos com pautas identitárias ou sociais de esquerda, mostraram notória dificuldade de compreender minha proposta. Um deles rechaçou completamente a minha conversa sobre fraternidade, afirmando que agora não seria momento para diálogos e consensos, mas para a luta!
Que as políticas identitárias, assim como as ultraconservadoras, têm gritado seus valores em volume máximo, exacerbando a polarização e a conflitividade social, está mais do que evidente para o observador honesto, enfim. Esse fato foi muito bem descrito por Mark Lilla em O Progressista de Ontem e o de Amanhã, como já mencionamos diversas vezes nessa coluna, e deveria ser suficiente para suspeitar das alegações de fraternidade da parte dos identitaristas.
O princípio da fraternidade é um princípio relacional e mediatório, e não um princípio de diferenciação
No tocante a essas políticas, parece-me evidente que elas buscam igualdade e justiça, mas não a fraternidade. Pois o princípio da fraternidade é um princípio relacional e mediatório, e não um princípio de diferenciação. Como afirma Reynaldo Fonseca:
“A ética imbuída de alteridade transforma a concepção de política e direito possíveis, pois o respeito e a responsabilidade para com o outro implicam em uma relativização da autonomia do ser e uma abertura para a sociabilidade.”
Na condição de princípio, a fraternidade deita raízes na tradição cristã, aparecendo na concepção de amor ao próximo em diversas passagens do Novo Testamento, caracterizada pelo universalismo e vivificada na realidade da comunidade religiosa.
“por que falar, hoje, em fraternidade? De acordo com Antonio Baggio, uma primeira ordem de motivos decorreria da realização incompleta dos projetos civilizatórios veiculados pelo binômio igualdade-liberdade; dessa forma, a fraternidade aparece como exigência e demanda em uma comunidade que não renunciou à realização dos valores universais da democracia em sociedades amplas e complexas, o que é posto atualmente na própria busca da felicidade. Sendo assim, o elemento fraterno desempenha função política relevante, tais como a ampliação de processos de mediação e superação de conflitos.”
A mera afirmação da “indivisibilidade dos direitos humanos” não é suficiente para efetivar no processo histórico a mediação entre liberdade e igualdade, e a luta por emancipação individual e por máxima realização de direitos não transfere poder suficiente ao Estado para efetivar esses direitos. É preciso incorporar o terceiro princípio, que não é um direito, mas um dever natural: o dever da fraternidade, que é reconhecido, como se reconhece a dignidade humana, a partir do correto uso da razão e da consciência.
Mais do que direitos humanos
É possível alegar que todo direito humano implica, necessariamente, um dever por parte daquele a quem se reivindica tais direitos. Mas isso me parece bastante desajeitado, pois tira o foco ético da questão dos bens comuns que precisamos reconhecer e cultivar juntos, e coloca toda a discussão em uma gaiola de ferro jurídica. Como se o dever da fraternidade fosse algo que pudéssemos reivindicar com tratados internacionais, e exigir por meio de coletivos de luta política ou através do Ministério Público.
Embora os deveres da fraternidade figurem com evidência na Declaração Universal dos Direitos Humanos, seria mais exato dizer que eles não são direitos humanos; eles são, antes, as condições sociais e morais para a realização de direitos humanos; condições de possibilidade e, ao mesmo tempo, limites estruturais. Cabe repetir, aqui, uma citação da jurista Mary Ann Glendon em Rights Talk que me causou forte impressão:
“Porque os indivíduos são parcialmente constituídos em e através de seus relacionamentos com outros, uma política liberal dedicada ao pleno e livre desenvolvimento humano não pode se dar ao luxo de ignorar os contextos mais condutíveis ao cumprimento desse ideal. Assim fazendo, a política liberal negligencia suas condições de sustentação. Pois as instituições da sociedade civil ajudam a sustentar uma ordem democrática, relativizando o poder, tanto do mercado quanto do Estado, e ajudando a resistir tanto a tendências consumistas quanto totalitárias. A miríade de associações que geram as normas sociais são suportes invisíveis e a condição sine qua non para um regime em que indivíduos têm direitos. Quando se permite que os direitos humanos subvertam as comunidades que são as fontes dessas práticas, eles destroem seus próprios fundamentos mais sólidos.”
A linguagem dos direitos deveria ser complementada e qualificada por uma linguagem da fraternidade e da amizade social, que por sua vez seria estruturada ao redor dos bens humanos que compartilhamos juntos
A questão da arquitetônica da comunidade é, assim, incontornável, enquanto pensamos sobre direitos e igualdades, pois o nexo comunitário é finito e tem regiões ótimas de operação. É possível adotar uma práxis irracional na luta por direitos, liberdades e igualdades, se o fazemos estressando o tecido social até o ponto em que ele é rasgado e a força de efetivação desses mesmos direitos é destruída. O respeito ao princípio da fraternidade pode ser visto, assim, como um princípio de racionalidade da ética social, e uma norma ética para o progresso civilizatório.
Se essa interpretação estiver correta, a linguagem dos direitos deveria ser complementada e qualificada por uma linguagem da fraternidade e da amizade social, que por sua vez seria estruturada ao redor dos bens humanos que compartilhamos juntos. Tal linguagem moral sobre bens e valores e sobre como eles são cultivados e desfrutados em comunidade seria a própria “substância” a partir da qual faria sentido falarmos em igualdades e liberdades.
Isso nos levaria, então, segundo a metáfora de Mary Ann Glendon, a um novo dialeto de direitos humanos, bastante diferente do atual dialeto liberal dos direitos, voltado como é para a emancipação de indivíduos atomizados. O novo dialeto de direitos humanos teria maior consideração pelas moralidades e pelos laços comunitários.
Tal decisão de incorporar o princípio da fraternidade e de expandir o novo dialeto envolve duas tarefas elementares: olhando “para trás”, precisaríamos recuperar as fontes da fraternidade; as dimensões da experiência humana que nos permitem compreender e viver a fraternidade. E olhando “para a frente”, precisaríamos determinar os meios de cultivo da fraternidade; pensar e agir de forma intencional e específica na busca de caminhos, práticas, pedagogias e mesmo políticas da fraternidade.
As fontes da fraternidade
A razão e a consciência, citadas explicitamente na DUDH, estão entre as fontes primárias da fraternidade, pois nos fornecem os sentimentos morais para a amizade social e o julgamento moral para reconhecer o valor da vida comum. Pensadores cristãos veriam aqui um ponto de contato com a noção de uma “lei natural”, mas mesmo quem não aceita essas ideias poderia concordar com nosso argumento acima sobre fraternidade como um princípio de consistência racional para a ética social.
No entanto, a fraternidade social não é mero axioma filosófico; é um fenômeno humano e histórico. Quanto a isso, Reynaldo Fonseca observou corretamente que a ideia de fraternidade é uma noção caracteristicamente cristã, mas que nem por isso deixa de ser universal.
Roel Kuiper, em Capital Moral, apresenta uma fenomenologia da família natural enquanto comunidade de formação moral, observando três estruturas relacionais: o pacto marital, que une homem e mulher; a estrutura vertical de pais e filhos; e a estrutura horizontal entre irmãos e irmãs. Essas três estruturas contribuem para a formação humana com experiências morais fundamentais que tornam possível a constituição de uma verdadeira sociedade.
Os novos hábitos de respeito, fidelidade e cuidado pelo próximo do cristianismo primitivo levariam, eventualmente, a uma nova cultura de consideração pelo pobre, pelo escravo, pela viúva, pelo estrangeiro e pelo órfão absolutamente inédita no mundo antigo
A relação de irmãos e irmãs, a partir de sua base de parentesco e semelhança, gera na forma mais elementar a experiência de igualdade e mútuo pertencimento. A irmandade ou fraternitas, essa experiência de fundo biológico, torna-se a metáfora para relações que superam em muito nossos instintos tribais e adaptativos de preservação de grupo. Diz Kuiper:
“Fraternidade e irmandade são conceitos que, em contextos sociais mais amplos, sempre simbolizaram o espírito comunitário humano. Em contextos religiosos e políticos, as pessoas eram abordadas como irmãos e irmãs para que, nessas instituições – onde as relações mútuas são mais ou menos voluntárias –, indicassem uma fidelidade comunitária inclusiva e duradoura. O compromisso social de membros da família é como um modelo para as relações mútuas na sociedade. Chama a atenção que, num mundo modernizador, em que as relações se tornam mais anônimas e impessoais, o apelo por fraternidade política e social tornou-se mais forte. Isso expõe a necessidade de um espírito comunitário.”
A contribuição judaica fundamental para o universalismo se dá por meio da doutrina da Imago Dei, a criação do homem segundo a imagem de Deus. Tanto nas Escrituras hebraicas quando no Novo Testamento a Imago Dei é invocada para destacar a igualdade e os deveres mútuos dos seres humanos.
Mas o passo crucial se dá quando a experiência de irmandade familiar e tribal é empregada por Jesus Cristo como metáfora para descrever a nossa relação com Deus: Ele é o Pai de Jesus, o Filho de Deus; mas aqueles que nele creem podem agora também se tornar filhos de Deus e seus irmãos, independentemente de serem escravos, livres, homens, mulheres, judeus ou gentios, gregos ou bárbaros.
A irmandade se torna, então, uma categoria da ética teológica cristã, governando os compromissos mútuos de cristãos, mesmo quando muito diferentes, e induzindo uma poderosa “cola” social. Os novos hábitos de respeito, fidelidade e cuidado pelo próximo do cristianismo primitivo levariam, eventualmente, a uma nova cultura de consideração pelo pobre, pelo escravo, pela viúva, pelo estrangeiro e pelo órfão absolutamente inédita no mundo antigo. E assim pôde ser construída uma nova comunidade moral.
O próximo passo seria a elevação da fraternidade a categoria moral e política universal: juntamente com a doutrina da Imago Dei e o dever universal do amor ao próximo, a ideia cristã de fraternidade se tornou a base para um universalismo da dignidade e dos direitos humanos. É preciso ter em mente, então, que sob o discurso da fraternidade estão as camadas da família natural e da religião cristã, e esses substratos não podem ser ignorados por quem deseja discutir seu significado hoje. Afinal, nem a família nem o cristianismo desapareceram.
Mas voltemos ao cerne da discussão: o que se procura quando se recorre à linguagem da fraternidade? Segundo nossa citação de Roel Kuiper, a experiência da comunidade.
As fontes da fraternidade não são políticas. Ou melhor: são pré-políticas. Elas se escondem onde a vida comum acontece
É essencial repetir, portanto, que fraternidade não é mero combate da desigualdade ou mera inclusão social, ou mera isonomia na aplicação da justiça; trata-se de um princípio distinto, e de caráter claramente moral, segundo o que diz o artigo 1.º da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse sentido, entendemos que a efetividade dos direitos humanos depende de uma ética de responsabilidade comunitária. Sem uma comunidade moral não é possível efetivar direitos, e as estruturas do governo civil serão sobrecarregadas.
Podemos com isso descer à questão prática: a efetividade do princípio da fraternidade se mostraria na presença de altos índices de cooperação e de confiança entre indivíduos, ou seja, de prosocialidade. E os lugares de constituição da prosocialidade são os mesmos: as nossas famílias, amizades e núcleos comunitários nos quais laços de confiança e ritos de cooperação podem ser exercitados, e dos quais as igrejas, sociedades religiosas e escolas são os exemplos mais importantes. É a partir desses contextos que uma cultura de confiança e de cooperação pelo bem comum pode se projetar para a sociedade como um todo e produzir o que Roel Kuiper chama de comunidade moral.
Esse ponto é muito interessante e muito importante: as fontes da fraternidade não são políticas. Ou melhor: são pré-políticas. Elas se escondem onde a vida comum acontece. É por isso, em parte, que o discurso político e jurídico tende a evitar o conceito: parece algo intratável. E de fato é intratável, para qualquer mentalidade ultrapolitizada, obcecada pelas guerras políticas e indisposta a dar à vida comum um tempo para respirar. Se a fraternidade que o brasileiro consegue viver nasce de sua experiência moral básica, de sua vivência familiar, de sua participação em igrejas, de suas amizades, o que um partido político, um coletivo de direitos humanos ou o Ministério Público podem fazer a respeito?
Se as fontes da fraternidade são pré-políticas, a melhor ajuda que governos, órgãos de Estado, partidos e coletivos políticos e imprensa poderiam dar, inicialmente, seria confessar a própria insuficiência e incompetência para dar solução ao problema, criando espaço para a família, a religião e a sociedade civil. Isso não significa que essas instâncias não devam se empenhar pela coesão social, segundo nossa citação de abertura do artigo, mas que precisarão pensar em termos de ecologia social.
Soluções?
Isso nos leva à segunda questão: e quanto aos meios de cultivo da fraternidade em nossas sociedades modernas? O que podemos fazer para promover a prosocialidade e fortalecer a experiência comunitária? Aqui temos matéria para programas de pesquisa, para experimentos em pedagogia e política pública, para reflexão missiológica pelas igrejas e certamente para debates sem fim!
Uma teoria moderna da fraternidade humana deveria compreender o papel desses lugares sociais (família, religião, amizade, círculos comunitários) na produção da confiança, da fraternidade e da amizade social, e em seguida interpretar o fenômeno da fraternidade no contexto de nossas sociedades modernas e diferenciadas. Como a economia e o Estado moderno fortalecem ou destroem a fraternidade? Como a política lida com esse capital humano? Como a fraternidade pode ser cultivada e desfrutada nos diversos campos da sociedade civil?
Se as fontes da fraternidade são pré-políticas, a melhor ajuda que governos, órgãos de Estado, partidos e coletivos políticos e imprensa poderiam dar é criar espaço para a família, a religião e a sociedade civil
A essa altura vale observar a interdisciplinaridade invocada pela questão da fraternidade, segundo o esboço acima, que conecta família natural, tradição religiosa e projeto civilizacional. Ela nos aproximaria de estudos científicos sobre o fenômeno da cooperação na natureza em geral e sobre as bases evolutivas do comportamento moral e da socialidade humana; por uma compreensão renovada da função da família na construção da ordem social, para além de libertarianismos e igualitarismos ideológicos; pela luz das ciências comportamentais sobre as condições ótimas da prosocialidade; pelos estudos críticos sobre o lugar da experiência comunitária em nossas sociedades modernas; e, naturalmente, pelas contribuições que as religiões e a teologia cristã pública podem dar ao mundo nesse momento, segundo o exemplo da Fratelli tutti.
Eu ofereceria aqui uma sugestão humilde, mas bastante prática, tendo em vista o chamado à cristandade levantado pelo Papa Francisco: poderíamos usar a investigação de capitais sociais e morais e o índice de confiança generalizada como marcadores de efetividade do terceiro princípio na sociedade, e recorrer a recursos modernos das ciências comportamentais para estimular a prosocialidade e dar-lhe as melhores expressões práticas e institucionais que nos for possível. Assunto para outro dia nessa coluna!
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos