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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Esquerda evangélica

A inacreditável súplica de uma pastora a Lula: controle estatal sobre as igrejas

O sonho dos evangélicos de esquerda é que o Estado controle quem pode ser pastor, o que o pastor pode ou não estudar, e quais igrejas podem ser abertas. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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Circulou em janeiro uma carta pública da teóloga luterana e jurista Lusmarina Garcia, endereçada ao presidente Lula e à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, com cópia para várias lideranças da cúpula petista. Recebi do amigo Juliano Spyer, e mal pude acreditar no conteúdo; suspeitei de farsa, por um momento, mas a carta foi publicada pelo site Brasil247 em 30 de janeiro. Era verdade o tal bilhete!

Seu teor? Em suma, uma cobrança e uma proposta indecente. A cobrança dizia respeito ao desinteresse de Lula pelos evangélicos progressistas, e especialmente aqueles ligados ao movimento ecumênico, como a própria Lusmarina. A pastora luterana é ligada ao Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), uma organização ecumênica que existe a reboque do progressismo nacional e global, com pouquíssimo interesse pela ortodoxia cristã, e minúscula contribuição para a fé evangélica no Brasil. Lusmarina, que já foi presidente do Conic, é altamente educada em teologia, doutora em Direito pela UFRJ e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ. Mas sua credencial mais relevante na carta era a de militante do partido desde 1987 e apoiadora incondicional do PT. Nessa qualidade, Lusmarina cobrou do governo o apoio ao seu movimento: a esquerda evangélica. Ou melhor: a esquerda evangélica “woke”.

A cobrança

Lula não foi cobrado apenas por ignorar essas lideranças ecumênicas, no entanto; o que doeu mesmo foram alguns esforços tímidos de aproximação do governo com lideranças e igrejas evangélicas “fundamentalistas”. A autorização para que o Ministério do Desenvolvimento assinasse um protocolo para que igrejas em contextos periféricos mediassem benefícios sociais motivou a queixa, que veio na forma de ataque a essas igrejas e seus líderes, tratados como portadores de uma enfermidade ideológica. Vale reproduzirmos alguns trechos aqui:

“As ‘pequenas igrejas’ às quais se está fazendo referência são, majoritariamente, igrejas de caráter neopentecostal, que articulam um discurso religioso baseado numa perspectiva teológica construída a partir do fundamentalismo cristão. A maioria das lideranças dessas igrejas não possui formação teológica e, se possui, é baseada numa matriz de pensamento e num método hermenêutico radicado nas escolas ultraconservadoras ligadas, em sua maioria, à ultradireita estadunidense. Ou seja, o discurso é formatado a partir do capitalismo (Teologia da Prosperidade e anticomunismo), do patriarcalismo (que se traduz em compreensões e práticas de submissão das mulheres e degrada-se, não raro, em misoginia e em diferentes formas de violência), da intolerância com respeito às diferenças (seja ela religiosa, comportamental, política ou de gênero), da branquitude (a matriz do pensamento é racista, embora num contexto de maioria negra, como o Brasil, o discurso tenha sido adaptado) e da espiritualização de tudo (que é a negação dos processos históricos, ou seja, tudo o que ocorre provém da vontade de Deus, de maneira que as políticas públicas de distribuição de renda, por exemplo, não são associadas a uma decisão política de governo, mas à vontade de Deus, que até ‘usa os inimigos’ para beneficiar o seu povo). Essa maneira de pensar despolitiza os fiéis e é refratária àquilo que os governos de esquerda buscam construir como sociedade. Não se vincula as melhorias de vida com as políticas públicas de Estado porque isso implicaria em romper com a matriz de pensamento que sustenta a Teologia da Prosperidade, que é baseada na meritocracia, no individualismo e no combate ao inimigo...”

“Os governos anteriores do PT estabeleceram alianças com as grandes igrejas neopentecostais. Ao fazê-lo, fortaleceram tais igrejas. Agora, parece que o governo busca estabelecer aliança com as pequenas igrejas neopentecostais. Ao fazê-lo, irá fortalecê-las também. As primeiras abandonaram Dilma, Lula e o PT tão logo os movimentos de desconstrução democrática tiveram início. As segundas não terão destino diferente. Por quê? Porque a matriz do pensamento teológico é a mesma; a matriz do pensamento teológico opõe-se à noção de bem público, participação igualitária, coletividade, pluralidade.”

Lusmarina cobrou do governo o apoio ao seu movimento: a esquerda evangélica. Ou melhor: a esquerda evangélica “woke”.

A fala é inequívoca, e traduz de forma transparente a opinião das esquerdas sobre igrejas e lideranças evangélicas: elas seriam “fundamentalistas” (no dialeto da elite, fundamentalista é o evangélico típico que leva a Bíblia a sério, independentemente da qualidade de sua vida intelectual ou de sua inteligência social), inimigas da democracia e do bem comum.

Devo dizer que minha opinião sobre a “teologia da prosperidade” não é boa; tenho graves preocupações com o tipo de teologia cristã promovido em muitas igrejas evangélicas, e ainda mais com essas mais novas, de classe média, na qual uma espécie de teologia da prosperidade 2.0 é anunciada por pregadores do coach. Ainda assim, a generalização da pastora Lusmarina é exagerada, preconceituosa e odienta. É menos análise crítica e muito mais aquele típico preconceito de classe média secularizada contra as massas religiosas. O mesmo tipo de postura que encontramos, por exemplo, no tristíssimo artigo da professora da USP Janice Theodoro da Silva publicado sem nenhuma vergonha no Jornal da USP, no qual a ilustre senhora desqualifica completamente os evangélicos.

A proposta

A pastora Lusmarina não ficou só nos reclames; ela surgiu com uma solução para o problema. Uma solução final que resolveria, de uma tacada só, o problema da má influência evangélica no país e o da invisibilidade dos ecumênicos progressistas: expressando o desespero dessa ala da esquerda evangélica, a teóloga propõe o controle estatal.

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“(...) essa realidade só pode ser de fato transformada com o estabelecimento de critérios tanto para a abertura de igrejas quanto para a formação das lideranças... O pensamento crítico precisa estar na base tanto de uma estratégia na área de comunicação quanto na formação educacional. Não me parece que haverá efetividade em uma campanha de comunicação direcionada aos evangélicos e às evangélicas se os conteúdos fundamentalistas não forem enfrentados. E para enfrentá-los, é preciso incorporar teólogos e teólogas que tenham a capacidade de elaborar argumentos bíblico-teológicos que promovam a releitura do arcabouço conceitual.”

“Naquilo que diz respeito à formação, entendo que o Ministério da Educação deveria ser o canal de estabelecimento de critérios curriculares para a formação teológica a partir do pensamento crítico, ou seja, os currículos dos cursos de Teologia ou Ciências da Religião precisam incorporar o método histórico-crítico como critério de formação. Para tal, faz-se necessário implementar avaliações sólidas dos currículos dos cursos de Teologia reconhecidos pelo MEC. O Brasil não permite que a medicina, a advocacia, a antropologia ou a sociologia sejam exercidas sem que os profissionais da área passem por um curso de formação criterioso; por que os pastores e as pastoras podem? Pastores e pastoras são agentes da construção da consciência das pessoas, por isso, é imprescindível que sejam bem formados e formadas. Tal formação não pode continuar utilizando uma matriz fundamentalista. Ademais, cursos on-line de três meses são insuficientes para que alguém possa ser habilitado para o exercício do pastorado ou para a condução de uma organização articuladora da subjetividade das pessoas.”

“Minha proposta é a criação de um comitê composto por teólogos e teólogas que fará a revisão dos currículos dos cursos de formação a serem reconhecidos pelo MEC e que a formação adequada das lideranças seja um critério para a abertura de igrejas.”

Ninguém teve a ousadia da pastora Lusmarina, capaz de propor com tanta honestidade a solução totalitária: controlar quem pode ser pastor, o que o pastor pode ou não estudar, e quais igrejas podem ser abertas

Ou seja: o Estado deveria assumir o controle do conteúdo da formação teológica dos pastores evangélicos, autorizar (ou não) e fiscalizar a atividade pastoral, e assim autorizar ou impedir a abertura de novas igrejas. Realmente... inacreditável.

O que a pastora recomenda, naturalmente, é uma brutal inconstitucionalidade, agravada por ser a religiosa uma acadêmica do Direito. Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico, comentou em um artigo que a proposta seria uma violação flagrante da liberdade religiosa, e um pé na jaca estratégico: “no aspecto político, parece-me que a proposta só serviria para alimentar a narrativa de que o PT gostaria de perseguir e cercear os direitos das igrejas evangélicas. Facilmente, o comitê teológico proposto por Garcia seria taxado de comitê da perseguição religiosa”. Até mesmo o pastor Alexandre Gonçalves, notório militante evangélico progressista, reconheceu em artigo no Observatório que em tal caso a laicidade do Estado seria “ferida de morte”.

A boca fala do que está cheio o coração

Enfim, um pouco de honestidade. A proposta indecente demonstra, de modo cabal, que há na esquerda brasileira, incluindo a esquerda “evangélica”, uma vontade totalitária, de controlar e de “consertar” o discurso e a teologia das igrejas, de modo a alinhá-la com o projeto hegemônico progressista. Lusmarina, militante desde 1987, sempre foi algo mais do que uma teóloga e pastora; revelou-se uma agente de conversão ideológica, empregando conexões religiosas como plataforma de interferência política no imaginário da comunidade cristã. Sem dúvida isso não é uma prática desconhecida; a novidade é a admissão pública do ódio da esquerda evangélica woke contra os evangélicos comuns, e a vontade de usar a força do Estado para neutralizá-los. Lusmarina descreve a sua carta como uma “contribuição fraterna de quem ama o PT”, depois de deixar clara a ausência de fraternidade em relação aos evangélicos.

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Esse mesmo espírito está presente em uma pletora de líderes evangélicos progressistas bem conhecidos: a esperança de usar a força e a influência do Estado, associada ao apoio de canais de mídia da elite cultural, para anabolizar suas versões ideológicas do cristianismo, compensando a sua falta de apelo natural, e para asfixiar o “fundamentalismo”. Um trabalho realmente indigno e vergonhoso, praticado à luz do dia.

Ninguém, no entanto, teve a ousadia da pastora Lusmarina, capaz de propor com tanta honestidade a solução totalitária: controlar quem pode ser pastor, o que o pastor pode ou não estudar, e quais igrejas podem ser abertas.

Mas quanta reverberação a cobrança e a proposta indecente podem ter? Quanto à cobrança, não vejo futuro. Em junho do ano passado publiquei um artigo levantando a pergunta: por que o governo Lula “esqueceu” os evangélicos progressistas? Não se esqueceu de nada, evidentemente. Lula sabe que ícones da esquerda evangélica como Henrique Vieira e companhia, ou o Conic, ou a pastora Lusmarina, não têm nenhum poder de comunicação ou influência sobre a base evangélica, porque seu discurso é uma reverberação das opiniões da elite cosmopolita nacional sobre religião e moralidade. É uma versão de fé evangélica pasteurizada e processada para agradar à audiência da GNT. Quem segue esses influenciadores é um público que gosta de ouvir “pastores” evangélicos dizendo o que eles querem ouvir – por exemplo, que eles não precisam de religião e muito menos de igreja.

Os líderes evangélicos precisam entender, com toda a clareza, que uma parcela significativa da esquerda evangélica é uma ameaça à liberdade e à integridade da fé evangélica. Essa ameaça não é oculta; é pública e explícita

Pois bem; ciente disso, e ciente da extrema animosidade desse grupo contra igrejas, pastores e fiéis evangélicos medianos, Lula não ganharia absolutamente nada em termos eleitorais dando moral para essa turma. Daí sua falha de memória. E, considerando o crescimento evangélico, suspeito que ela continuará falhando.

Mas e quanto à proposta indecente? Não sabemos dizer ao certo o quão disseminada é essa vontade de infiltração e controle, mas pesos pesados como Gilberto Carvalho e José Genoino já a expressaram em algumas ocasiões. E ela pode ganhar mais popularidade. Há poucos dias, num vídeo que circulou amplamente, a jornalista Eliane Cantanhêde defendeu no programa Em Pauta, da Globonews, a regulação estatal das igrejas. O contexto é a percepção de que há “igrejas demais” no Brasil. A absurdidade cometida pela jornalista foi muito bem dissecada pelos confrades do IBDR Thiago Vieira e Jean Regina, em sua coluna na Gazeta.

O que os líderes evangélicos precisam entender, com toda a clareza, é que uma parcela significativa da esquerda evangélica é uma ameaça à liberdade e à integridade da fé evangélica. Essa ameaça não é oculta; é pública e explícita. Há no campo da esquerda evangélica e dos ecumênicos uma busca frenética de apoio do Estado e do jornalismo em sua cruzada contra o conservadorismo e o “fundamentalismo”. Para isso eles não hesitam em desqualificar pastores e igrejas, nem em propor desavergonhadamente a destruição das liberdades civis fundamentais. Cabe a nós cuidar das nossas liberdades civis para garantir que a inacreditável carta da pastora Lusmarina, assim como outras inacreditáveis propostas da esquerda evangélica, permaneçam firmemente inacreditáveis.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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