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Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É Pastor da Igreja Esperança em Belo Horizonte e diretor de L’Abri Fellowship Brasil. Foi diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos no Governo Federal.

Por que as igrejas e os psicólogos precisam uns dos outros

(Foto: Anemone123/Pixabay)

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Com o avanço nacional da vacinação, especialmente nas capitais, e a dramática redução no número de casos e de mortes, a vida parece aos poucos retomar algo da normalidade. Com seus movimentos bastante limitados, é claro – máscaras, álcool, distanciamento, pouca aglomeração, pouco dinheiro para viajar. É verdade que para algumas pessoas esses limites nunca foram respeitados, mas no geral o metabolismo da nossa sociabilidade vem sendo lentamente retomado.

E com esse retorno gradual se aproxima o momento de lidar com os variados efeitos da pandemia, desde assuntos práticos como a manutenção ou relaxamento do home office ou os gastos com a gasolina, até assuntos bem mais doloridos como as questões de saúde mental e das nossas relações humanas, o assunto da nossa coluna de hoje.

A pandemia da alma

A bem da verdade, essa última questão já vinha sendo enfrentada pelos brasileiros havia meses – a procura por atendimento psicológico on-line cresceu brutalmente desde 2020. A plataforma e-Psi, que cadastra psicólogos para atendimento on-line, teve um aumento de 325% no número de psicólogos em poucos meses, com adesão de dezenas de milhares de profissionais. Algumas plataformas registravam crescimentos elevados em poucos meses (uma delas informou 600% de aumento na procura por atendimentos on-line já no começo de 2021).

À medida que as pessoas saem de casa – ou não saem –, o impacto da piora na saúde mental começa a ser sentido socialmente, de forma muito mais nítida

Essa corrida ao terapeuta foi um claro sinal de problemas, que, no entanto, foram parcialmente abafados pelo isolamento social. Mas, à medida que as pessoas saem de casa – ou não saem –, o impacto da piora na saúde mental começa a ser sentido socialmente, de forma muito mais nítida.

E essa piora já é um fato bem estabelecido. Em maio do ano passado o secretário-geral da ONU, António Guterres, já advertia sobre a previsão de aumento do sofrimento psicológico durante a pandemia. E há poucas semanas, um artigo de 8 de outubro, publicado na The Lancet, cobrindo 204 países e territórios do mundo, revelou grande aumento global de casos de depressão (53 milhões de casos) e ansiedade (76 milhões de casos), principalmente de jovens e mulheres. Ao mesmo tempo, os sistemas de saúde mental não estão dando conta de lidar com o problema.

Falando sobre o sistema brasileiro: em 2 de setembro um grupo de brasileiros já havia publicado um artigo intitulado “The Next Pandemic” (“A Nova Pandemia”) também na The Lancet, focando o impacto do acesso a serviços de saúde mental durante a pandemia. O grupo detectou queda nos atendimentos regulares e hospitalizações psiquiátricas, com quase 500 mil pessoas suspendendo as consultas, ao mesmo tempo em que consultas de emergência e atendimento em casa aumentaram. Na opinião dos pesquisadores, isso sinaliza uma crise de atendimento que pode gerar uma “pandemia paralela” de saúde mental.

Mas a coisa se mostra ainda mais grave, se consideramos que o agravamento das condições globais de saúde mental já vinha deixando as autoridades de saúde de cabelo em pé há muito tempo. Em outubro de 2018 a Comissão Lancet sobre Saúde Mental Global e Desenvolvimento Sustentável publicou um relatório alarmante. Segundo o time de 28 especialistas, está em pleno curso uma epidemia global, atingindo inclusive países desenvolvidos, de ansiedade, depressão e doenças causadas por violência e traumas. O grupo afirmou que 13,5 milhões de mortes anuais poderiam ser evitadas com melhores sistemas de atendimento e tratamento, e estimou um gasto de US$ 16 trilhões até 2030. É muito sofrimento, e uma conta muito, mas muito alta.

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Pois bem: esse já era o quadro quando a pandemia da Covid-19 entrou em cena; uma pandemia encontrou outra pandemia. E é com essas informações em mente que devemos enquadrar nossos casos anedóticos de crises familiares e procura por atendimentos psicológicos e psiquiátricos entre nossos amigos e parentes, quando não por nós mesmos. Há processos e problemas sistêmicos aqui, e não devemos abstrair nosso sofrimento pessoal desses processos. E essa outra pandemia não irá embora rápido.

Mas podemos ser mais específicos sobre as causas desse sofrimento mental? Quanto ao aumento causado pela pandemia, isso é mais fácil; o grupo da The Lancet detectou uma correlação desse aumento com a perda de mobilidade e com a própria exposição ao risco de infecção. O maior sofrimento das mulheres pode estar relacionado também com a piora na vida doméstica: um estudo da Confederação Nacional dos Municípios detectou aumento de 20% na violência contra a mulher nas cidades brasileiras. No caso dos jovens, a perda dos vínculos sociais pelo fechamento das escolas certamente teve um papel importante.

Mas esses problemas, na verdade, apenas agravaram as doenças já presentes em nossa sociedade. Segundo argumentei em outro artigo nessa coluna, a pandemia expôs a vulnerabilidade da vida comunitária e familiar pobre; quem já vivia a intimidade doméstica de forma precária sofreu ainda mais com a pandemia. Mais do que isso: depressão, ansiedade e outros distúrbios parecem ser externalidades inescapáveis de nossa moderna sociedade individualista, predatória e narcisista.

Igrejas e terapeutas

Quem vai segurar esse rojão? É claro que a classe terapêutica terá um papel importantíssimo aqui, e o campo dos profissionais de saúde mental está discutindo vivamente os caminhos para enfrentar o problema. Mas, como ministro religioso, não posso deixar de mencionar, aqui, o papel das igrejas e do aconselhamento pastoral, o velho serviço de “cura d’almas” que as comunidades religiosas sempre cumpriram e continuaram cumprindo, mesmo com a ascensão da moderna psicologia científica e clínica.

Nesse campo religioso já não temos dados organizados, como é o caso com os atendimentos psicológicos, mas o fato é que uma parcela significativa da população brasileira é evangélica ou católica praticante, e boa parte dessas pessoas recorre sistematicamente ao “aconselhamento pastoral” no enfrentamento de suas questões internas e familiares. Certamente se trata de uma ajuda muito diversa da ajuda psicológica; naquela o foco é muito mais existencial-religioso, moral e “vertical” do que no entendimento mais “horizontal” do sofrimento psicológico e dos emaranhados mentais. Como eu expliquei a uma amiga num dia desses, o aconselhamento pastoral lida com a ruptura com o infinito, enquanto a terapia comum lida com as rupturas com as finitudes. Mas, evidentemente, não é possível separar de todo as duas dimensões; elas se interpenetram.

Parcela significativa da população brasileira é evangélica ou católica praticante, e boa parte dessas pessoas recorre sistematicamente ao “aconselhamento pastoral” no enfrentamento de suas questões internas e familiares

Além disso, uma parte importante da saúde mental é a convivência e o suporte emocional e moral comunitário, que encontramos em amigos, parentes e colegas de trabalho, por exemplo, mas que boa parte dos brasileiros encontra em suas igrejas. Igrejas são pequenos ecossistemas comunitários, promovendo encontros de famílias, de amigos, de jovens, tratamento de dilemas familiares, atividades para crianças, espaço para desabafos, suporte em necessidades (durante a pandemia, nossa pequena paróquia auxiliou dezenas de famílias com necessidades básicas), amizades de longo prazo e um sentido de identidade e pertencimento. Um grau de intensidade comunitária que dificilmente pode ser encontrado numa empresa, universidade ou vizinhança.

Um encontro inadiável

Minha própria experiência é de complementaridade: constantemente precisamos discernir até que ponto conselhos religiosos e éticos diretos ajudam o indivíduo e quando precisamos encaminhá-lo ao psicólogo ou ao psiquiatra. Em muitos casos a comunidade fornece um contexto para a saúde, mas não um remédio para a mente. A fé precisa ter a humildade de reconhecer seus limites e a soberania legítima das ciências psicológicas, e especialmente nesse momento crítico da história. Eu mesmo tenho feito esses encaminhamentos a profissionais da área com frequência cada vez maior, confirmando as advertências científicas sobre o impacto da pandemia global de saúde mental.

Mas outro fenômeno comum tem sido a descoberta, durante o aconselhamento pastoral, de que a pessoa já vinha frequentando um consultório psicológico, e que ela teria sido ajudada, por certo profissional, a reorganizar sua vida pessoal; só que com valores incompatíveis com o cristianismo, favorecendo atitudes individualistas e o primado do bem-estar pessoal sobre responsabilidades comunitárias ou até mesmo sobre a fé. Um estranho fenômeno: valores e soluções existenciais substanciais são contrabandeados sob a embalagem da neutralidade profissional.

A psicologia brasileira tem um conhecido viés antirreligioso e, se Philip Rieff estiver certo, esse viés não é meramente um “conflito de fé e ciência”, mas de paradigmas existenciais e terapêuticas competidoras

De certo modo isso não é surpreendente; a psicologia brasileira tem um conhecido viés antirreligioso (bem maior que, por exemplo, a nossa psiquiatria) e, se Philip Rieff estiver certo, esse viés não é meramente um “conflito de fé e ciência”, mas de paradigmas existenciais e terapêuticas competidoras. Por não reconhecer a terapêutica secular e seus ideais de felicidade como o que realmente são – o sacerdócio de uma grande religião secular –, muitos psicólogos interpretam mal seus colegas de profissão cristãos, quando esses colocam as ciências psicológicas e suas ferramentas clínicas a serviço de outras concepções de felicidade e de saúde humana. Eles se enxergam bem-vestidos com a neutralidade religiosa e moral, embora seus trajes sejam notoriamente transparentes.

Enfim, lidar com esses dilemas é uma espécie de “feijão-com-arroz” entre conselheiros pastorais. Mas dou o braço a torcer: do outro lado, profissionais sérios da saúde mental têm frequentemente de lidar com conselhos estapafúrdios de alguns líderes religiosos e com sequelas causadas por comunidades religiosas tóxicas. Aqui, não tem jeito: todo mundo vai sofrer.

Mesmo assim, há evidência robusta de que a contribuição global da religião é positiva para a saúde mental humana, e de que essa evidência é sistematicamente negligenciada pelos atores do campo da saúde mental. Essa negligência foi admitida, por exemplo, num artigo recente da The Lancet sobre espiritualidade e saúde mental. Ao mesmo tempo, a contribuição da religião para a saúde mental também é reconhecida há muito tempo nos meios acadêmicos. Para dar um exemplo próximo, um artigo popular do amigo Alexander Moreira-Almeida no Brazilian Journal of Psychiatry já cantou a pedra há quase 15 anos.

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Tomando esses fatos em conjunto – tanto a complementaridade, quanto as tensões –, o que vejo, do ponto de vista de meu próprio gabinete de aconselhamento pastoral, é que a pandemia de sofrimento mental aproximou dramaticamente o campo da saúde mental e as igrejas, mesmo que cada lado permaneça ignorando solenemente o outro. Nossas trincheiras estão próximas, e a pandemia de saúde mental pede trégua e cooperação.

O ideal, certamente, seria que líderes religiosos e conselhos profissionais da área, como o CFP, admitissem abertamente a legitimidade uns dos outros e a complementaridade no cuidado das pessoas. Mais ainda: seria maravilhoso se, respeitando a fé e as inclinações dos pacientes, encaminhamentos mútuos e trabalho de equipe entre profissionais e ministros religiosos se tornassem rotineiros. Mas, se isso não acontecer a partir do topo da classe psicológica e psiquiátrica, vai acontecer na base, inevitavelmente. Na verdade, já está acontecendo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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