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“Do outro lado a gente tem o homeschooling. O homeschooling é colocar as crianças em casa, totalmente à mercê de violência, de abuso, de trabalho infantil, de milícias... eu tô falando aqui de cortes na educação, de perseguição àqueles que querem fazer pesquisa... eu tô falando aqui de um outro lado que não tem nada a ver com a educação que a gente acredita.” (Priscila Cruz, diretora do Todos pela Educação, em 10 de outubro de 2022)
As novas sobre a fala de Priscila Cruz no evento do PT me alcançaram como notícias de um país muito distante e estranho, com opiniões ainda mais estranhas sobre nós, pobres nativos. Assisti ao trecho do vídeo num tuíte do amigo Pedro Pamplona, incrédulo, como um tupi assistindo à chegada daquelas canoas enormes, cheias de gente branca e cheirosa.
Mas não importa o quanto eu tente me enfiar nos matagais da vida comum, sou regularmente arrancado de lá por absurdidades conspiratórias. Denunciei nessa coluna várias delas, produzidas pela direita, durante os piores meses da pandemia; mas a desinformação sistemática é realmente um pecado universal. Os encanamentos da esquerda seguem contribuindo fiel e infalivelmente com os da direita no grande esgoto a céu aberto da desinformação.
Priscila Cruz não é uma tuiteira de esquerda, uma influencer desavisada, uma militante “hater”, mas uma pessoa séria e qualificadíssima em seu campo, o que torna sua afirmação sobre os pais homeschoolers ainda mais grave
Priscila Cruz não é qualquer pessoa. É formada em Administração pela FGV, e em Administração Pública pela Harvard Kennedy School of Government; membro de institutos importantes, como o CNJ, o MAM, a Fundação Itaú de Educação e Cultura, o Centro de Estudos de Educação e Inovação em Educação da FGV-Rio e – quero dar destaque especial a isso – membro do Grupo de Estudos de Educação do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp.
Não se trata, portanto, de qualquer pessoa; não é uma tuiteira de esquerda, uma influencer desavisada, uma militante “hater”, mas uma pessoa séria e qualificadíssima em seu campo. Ela é cofundadora e presidente executiva do Todos pela Educação, uma iniciativa fabulosa e sem fins lucrativos que propõe e reivindica “políticas públicas educacionais que garantam aprendizagem e igualdade de oportunidades para as crianças e jovens brasileiros”. Eu sempre ouvi coisas boas sobre a ONG, e mesmo supondo que haveria importantes divergências entre a minha visão de mundo e a de Priscila Cruz, assumi, como deve ser, a boa vontade e o rigor de toda a iniciativa. Quem poderia se opor ao melhoramento e à equanimidade na educação pública?
Bolsonaristas extremos talvez me acusem, como de costume, de ingenuidade inveterada, mas não quero pensar que pessoas envolvidas com esforços educacionais tão necessários à nossa nação sejam mal-intencionadas, apenas por serem esquerdistas. É-me forçoso admitir, no entanto, que o viés ideológico corrompeu a mente da nossa esquerda democrática num grau bastante extenso. E o fez a partir do topo; pois, se alguém representa o topo do projeto educacional esquerdista, hoje, esse alguém é Priscila Cruz.
“A educação que a gente acredita”
O fato de a declaração vir do topo torna a coisa ainda mais horrenda. Afinal, a expressão empregada por ela, em sua denúncia do homeschooling, foi “a educação que a gente acredita”. Ora, eu também acredito em boas políticas públicas de educação básica, em qualidade, inclusividade e acessibilidade, e em boa parte da agenda desse grupo. Eu e muitos conservadores concordarão, também, que o governo Bolsonaro fez escolhas ominosas para a liderança do MEC, como foi o caso de Abraham Weintraub: uma escolha que, para mim, chega perto do imperdoável. O homem estava lá apenas para infernizar os esquerdistas da pasta, e não para desenvolver um projeto. Uma vergonha absoluta.
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Mas, então, o absurdo: uma das líderes culturais nacionais, em um evento de enorme importância política, pronuncia uma série de mentiras sobre um movimento que não é uma política pública, nem tem a pretensão de competir com o trabalho do Todos pela Educação: o movimento da educação domiciliar, ou homeschooling. E o que ela pronuncia não é só uma mentira: ela associa o movimento inteiro com o crime. A Aned, as associações de pais, os tutores e os próprios pais que lutam pela educação domiciliar estão, na verdade, violando os direitos das crianças e facilitando o cometimento de crimes. E isso, meus caros, é “a educação que a gente acredita”.
Parece que, no topo da educação brasileira e no topo da mente da esquerda democrática, “a gente acredita” que os pais educadores são pais abusadores.
Reações
Eu consultei alguns especialistas sobre as declarações de Priscila Cruz. Maurício Cunha, um amigo de longa data, fundou a ONG Cadi, foi Secretário Nacional da Criança e do Adolescente no governo Bolsonaro e é, atualmente, diretor de país da ChildFund no Brasil. Tem a experiência, a competência e a biografia para falar sobre a proteção da criança. Segue a sua opinião:
“O homeschooling é uma alternativa viável para famílias que desejam ter o direito legítimo de educar os seus filhos em casa. Estudos americanos mostram que o perfil dessas famílias, muito atentas ao cuidado dos seus filhos, oferece risco baixíssimo de violência, abandono intelectual e abuso de crianças. Não são as famílias do homeschooling que agridem e violam os direitos dos seus filhos. Embora a violência contra a criança aconteça predominantemente no ambiente doméstico, o perfil das famílias agressoras costuma ser muito distinto das que demandam por esse direito.”
Parece que, no topo da educação brasileira e no topo da mente da esquerda democrática, “a gente acredita” que os pais educadores são pais abusadores
Outro amigo próximo, o pedagogo e escritor Igor da Silva Miguel, ele mesmo um adepto do ensino domiciliar, destaca a absurdidade das ilações da diretora do Todos pela Educação:
“Priscila Cruz erra gravemente ao deformar a imagem moral de famílias que praticam o ensino domiciliar. Infelizmente, sua retórica é baseada em mera aversão pessoal a uma prática que ela desconhece completamente. Ela poderia apresentar objeções pedagógicas à prática, mas escolheu atribuir, de maneira preconceituosa, crimes a famílias educadoras, sem nenhuma evidência. E, mesmo que houvesse evidente caso de abuso por uma ou outra família, a generalização seria equivalente ao erro de quem associa escola ao tráfico de drogas ou à violência porque eventualmente lá podem ocorrer atos infracionais ou crimes de tais natureza. Qualquer pessoa que conhece quem pratica a educação domiciliar sabe que, independentemente de certa adesão ideológica, em tais famílias o que se vê são famílias dedicadas ao cuidado, educação e formação intelectual e emocional de seus filhos. O crime, ironicamente, pode estar na natureza da acusação e não na factualidade desta.”
Em outros termos: se a existência de violência doméstica justificasse tirar a educação das mãos dos pais, também a existência de bullying, de iniciação sexual precoce (incluindo gravidez adolescente) e de redes de tráfico de drogas atuando nas escolas justificaria a abolição da escola pública. Ou seja, uma tolice consumada.
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O professor Carlos Eduardo Rangel Xavier, mestre em Direito, advogado público e conhecido educador jurídico, lançou no ano passado, juntamente com a professora Melissa Moschella (da Catholic University of America), a obra Educação Domiciliar: um Direito Humano Negativo (Classical Press, 2021), e é um especialista nos aspectos jurídicos do homeschooling. Transcrevo abaixo a sua reação, na íntegra:
“A Sra. Priscila Cruz demonstrou ignorância ou malícia (possivelmente ambas) acerca do que é a educação domiciliar e da realidade desta prática no Brasil, que já conta com a adesão de dezenas de milhares de famílias. Conceitualmente – e a questão aqui é meramente lógica – pais educadores não são pais abusadores. Aliás, as famílias que optam pela educação domiciliar são famílias funcionais. Ou seja, não são famílias nas quais há abuso, violência, trabalho infantil ou envolvimento com milícias (o que quer que isso pudesse significar no contexto da educação domiciliar...).
Sua manifestação, além de ser conceitualmente equivocada, é completamente alheia à realidade social; não tem amparo em qualquer dado empírico (e, de fato, seria impossível que estivesse amparada em dados inexistentes), de maneira que deve ser compreendida como simples peça de propaganda ideológica contra a educação domiciliar.
Se a existência de violência doméstica justificasse tirar a educação das mãos dos pais, também a existência de bullying, de iniciação sexual precoce e de redes de tráfico de drogas atuando nas escolas justificaria a abolição da escola pública
Além disso, ao sugerir alguma ligação da educação domiciliar com o enfraquecimento da educação pública e do investimento em pesquisa, a Diretora do Todos pela Educação parece também desconhecer que a educação domiciliar não é para todos. Educação domiciliar não é, nunca foi e nunca será uma política pública. De fato, o que são algumas dezenas de milhares de crianças e adolescentes educadas em casa diante das cerca de 50 milhões de matrículas na educação básica? 1%, na melhor das hipóteses, de toda a população em idade escolar no Brasil?
Assim, continuam e continuarão sendo estatisticamente poucos os pais e mães que estão dispostos a realizar todos os sacrifícios necessários para assumir de forma integral o controle da educação de seus filhos – mesmo nos Estados Unidos, nação com a maior quantidade de famílias adeptas à educação domiciliar no mundo, a quantidade de estudantes domiciliares não é superior a 5% da população em idade escolar.
Contudo, estes valentes pais e mães estão apenas exercendo um direito que lhes é garantido pela ordem natural e pelo sistema de proteção internacional dos direitos humanos. Pois tanto na perspectiva da lei natural quanto de acordo com as normas internacionais de proteção dos direitos humanos, existe uma primazia educacional dos pais. Isso porque a autoridade dos pais sobre os filhos é originária, pré-política, anterior ao Estado e não dependente deste ou mesmo do seu reconhecimento para que seja afirmada e exercida.
Por isso, negar aos pais o direito de educar seus próprios filhos (ainda que, de fato, sejam relativa e estatisticamente poucos os que estão dispostos a fazê-lo) sempre será uma grave injustiça ou uma séria violação de direitos humanos. Se supostamente todos estão pela educação, certamente e com muito mais razão os pais e mães educadores o estão!”
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No que se refere à fala desastrosa da diretora do Todos pela Educação, merece destaque o fato aludido pelo professor Carlos Xavier de que existe um direito natural e humano da família à educação de seus filhos, e que esse direito não pode ser anulado por um projeto político.
E aqui acrescento meu olhar leigo, mas não desinformado: na mesma Universidade de Harvard na qual Priscila Cruz concluiu o seu mestrado há um professor muito importante, fundador do The Human Flourishing Program dentro do Instituto de Ciência Social Quantitativa de Harvard, que publicou estudo recente demonstrando que a saúde mental de estudantes oriundos de homeschooling é, na média, superior à dos estudantes oriundos de escolas públicas dos EUA. E com certeza as escolas públicas brasileiras não são melhores que as de lá, não é? Eu citei o trabalho de Tyler J. VanderWeele em um artigo sobre o tema: “E se o homeschooling for mesmo melhor que a escola?”
É terrível ter de admiti-lo, mas a declaração de Priscila Cruz, com a anuência da campanha de Lula, é vazia de suporte científico e fomenta a violação de direitos humanos fundamentais, e se mostra sequestrada por um dialeto de Direitos Humanos liberal-progressista e antifamília.
A família e a elite cultural nacional
Que as nossas elites culturais vêm sendo formadas em uma densa narrativa antifamília não é novidade nenhuma. Em seu ensaio clássico de interpretação nacional, Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda empregou uma interpretação peculiar da Antígona de Sófocles para ilustrar o problema nacional: precisamos escolher entre a família ou a pólis, o laço afetivo e o projeto nacional. A família é o laço cordial, tribalista, patriarcal e incapaz de gerar virtudes públicas:
“Com efeito, onde quer que prospere e assente em bases muito sólidas a ideia de família – e principalmente onde predomina a família de tipo patriarcal – tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições a formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais.”
A família representa o atraso, a mente colonial e autoritária de um mundo evanescente, em vias de ser engolido pela urbanização, industrialização e secularização. Ainda que a família patriarcal branca e católica retivesse algo de sua hegemonia nos anos 1930, sua superação seria questão de tempo.
O esforço para combater a família “tradicional” e para forçar a mudança em nosso direito de família tem proporções impressionantes, como o exemplifica o movimento dos “Direitos Afetivos”
A leitura buarqueana foi compartilhada por vários modernistas brasileiros e pela esquerda nacional que se consolidava naqueles anos; o familismo conservador de Gilberto Freyre seria completamente derrotado, nos meios intelectuais, por Florestan Fernandes e a escola uspiana, e em 1962 Sérgio Buarque de Holanda fundaria o Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Mais alguns anos, já idoso, e o sábio participaria da fundação do PT, em 1980. Quarenta anos depois do nascimento do PT, a mentalidade antifamília é hegemônica no jornalismo, na produção cultural, no movimento local de Direitos Humanos e na universidade brasileira.
Essa elite cultural não se vê, naturalmente, como uma classe hegemônica e velha; a imagem idealizada de um progressismo juvenil em luta contra o sistema tornou-se uma identidade psicológica para muitos deles. O fato, no entanto, é que essa elite completou 100 anos em 2022, e tenta manter em suas mãos o controle da narrativa nacional. Não admira, portanto, que até o governo Bolsonaro a ideia de políticas públicas pró-família tenha sido objeto de pura zombaria (como continua a ser o caso), e que a pesquisa científica e clínica sobre o bem-estar da família tenha, em nosso sistema universitário, proporções ridículas.
Ao mesmo tempo, contraditoriamente, o esforço para combater a família “tradicional” e para forçar a mudança em nosso direito de família tem proporções impressionantes, como o exemplifica o movimento dos “Direitos Afetivos”. Investigação mínima e militância máxima: esse é o tratamento dado à pauta da família pela nossa elite cultural.
Isso fica muito claro no caso Priscila Cruz; pois o fato é que a declaração cometida por ela não se deu em uma conversa trivial, ou num desses tão comuns e impensados desabafos que ocorrem todos os dias nas mídias sociais, mas em um importante evento da candidatura Lula: o encontro do Coletivo Derrubando Muros, na última segunda feira, 10 de outubro, em São Paulo. Todos são signatários do “Manifesto pela Paz e pela Democracia”, incluindo a diretora do Todos pela Educação.
No credo educacional da nata econômica e cultural brasileira, a proteção da família não tem nenhum futuro
Mas quem participa desse distinto grupo? Cerca de 200 nomes – todos pesos-pesados – de líderes intelectuais e culturais do nosso Brasil. Vale aqui citarmos na íntegra um veículo de esquerda, O Vermelho:
“A lista de empresários do grupo conta com nomes como Horácio Lafer Piva (da Klabin), José Olympio Pereira (do banco Credit Suisse), Antonio Moreira Salles (filho do presidente do Conselho de Administração do Itaú, Pedro Moreira Salles), Marcelo Britto, da Associação Brasileira do Agronegócio, e os economistas Pérsio Arida, Armínio Fraga, André Lara Rezende e Elena Landau. O grupo reúne também especialistas como Ana Toni, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade; Fersen Lambranho, empreendedor; Joana Monteiro, doutora em Economia, coordenadora do Centro de Ciência Aplicada à Segurança da FGV; Luiz Barroso, engenheiro especializado em Energia, diretor-presidente da PSR Consultoria; Pedro Hallal, epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas; A iniciativa atua em várias frentes. Na educação, por exemplo, os representantes são o ex-ministro Cristovam Buarque e Priscila Cruz, do Todos pela Educação; entre outros.”
Não há nada de mais em um grupo de líderes culturais se reunir para propor um projeto nacional; isso é o que líderes culturais fazem, afinal de contas. Temos aqui empresários, intelectuais, economistas, lideranças da sociedade civil, lideranças universitárias e políticos de renome. Essa nata econômica e cultural representa de modo bastante preciso a nossa elite cultural progressista, num sentido analítico; uma composição que se opõe ao proletariado cultural nacional. Essa elite cultural não é apenas poderosa, de um ponto de vista econômico e político, mas representa um projeto moral muito particular, de natureza liberal-progressista, e que inclui “a educação que a gente acredita”. E nesse credo educacional, meus amigos, a proteção da família não tem nenhum futuro.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos