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Guilherme Macalossi

Guilherme Macalossi

Opinião

Retórica antivacina é sintoma da doença moral que assola o centro do poder

É verdade. Para desviar a atenção dos muitos problemas de seu governo e, principalmente, do caso Fabrício Queiroz, Jair Bolsonaro adotou a estratégia de pautar o noticiário pelo absurdo. Quando algo não vai bem, ele dispara alguma indecência, alguma boçalidade, alguma delinquência, qualquer coisa que seja capaz de capturar a atenção da imprensa e das redes sociais. No mesmo dia em que se divulgava o tombo histórico de -9,7% do PIB no 2° trimestre, ele se pôs a falar sobre vacinação (retórica antivacina) contra o coronavírus.

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Respondendo a uma apoiadora, uma daquelas de estilo lombrosiano, afirmou que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Sua frase foi parar também em uma postagem da Secretaria de Comunicação. Diante de um cenário tenebroso com quatro milhões de contaminados e mais de 120 mil mortos, era óbvio que isso despertaria reações. Dito e feito.

Mas poderia ser diferente? Como ignorar algo tão insidioso? Uma declaração dessas, partido da autoridade máxima do país e compartilhada pelos órgãos oficiais do governo, tem um poder de influência gigantesco e representa risco real para uma quantidade incalculável de pessoas. Brasileiros que tomam as palavras de Bolsonaro como verdade absoluta e podem achar que estar à mercê de uma doença altamente contagiosa é só uma questão opção.

As tais distrações de Bolsonaro não são benignas. O presidente brinca com a vida das pessoas. E isso precisa ser denunciado, mesmo que o resultado seja cair em sua “armadilha”. Afinal, estamos a tratar da natureza obscurantista deste governo . E é bom lembrar que ela não se limita ao campo da retórica.

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O negacionismo  da pandemia virou política de Estado. Das necessárias medidas de isolamento até os protocolos sanitários mais básicos, tudo foi devidamente boicotado pelo mandatário. Nem mesmo o uso da máscara passou incólume. Bolsonaro entrou na Justiça para não precisar usá-la em atos públicos e vetou trechos da lei que regulava sua utilização pela população. Mais do que isso: disse que sua eficácia era quase nula.

Quantos se insurgiram contra o uso de máscara? Quantos já estão se insurgindo contra a vacinação? E a título de que? Defender a liberdade individual, como assevera a Secom com indisfarçável orgulho? Nada poderia ser mais errado e grotesco. Estão transformando o princípio libertário da não-agressão em uma verdadeira ética sociopática, coisa que jamais foi.

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Em seu livro “A Ética da Liberdade”, Murray Rothbard defende que "toda pessoa é a proprietária de seu próprio corpo físico assim como todos os recursos naturais que ela coloca em uso através de seu corpo antes que qualquer um o faça”. O autor, entretanto, arremata estabelecendo uma limitação fundamental: “esta propriedade implica o seu direito de empregar estes recursos como lhe convém até o ponto que isto afete a integridade física da propriedade de outro ou delimite o controle da propriedade de outro sem seu consentimento”.

Aplicado ao coronavírus, esse axioma poderia ser traduzido da seguinte forma: você não tem o direito de ser vetor de contaminação para as outras pessoas. Uma pandemia só pode ser controlada pela ação conjunta da sociedade. Em seu Twitter, o professor Thomas Conti assinala: “a obrigatoriedade da vacinação não vem para salvar você de si mesmo, mas para salvar os outros do risco que você causaria”.

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Não há nada de antiliberal na imposição do uso de máscaras ou até mesmo da vacinação. O que estão é tentando destruir o senso de responsabilidade individual com base em deturpações premeditadas. Ao invés de buscar a conscientização de que todos devem se imunizar, Bolsonaro vocaliza o conspiracionismo psicótico que ulula no baixo meretrício intelectual e nos porões da internet. Como disse Reinaldo Azevedo na Band News, é claro que se trata de uma campanha contra a vacinação. Ou o que o presidente disse teria algum outro propósito se não exatamente esse?

Se há uma coisa de que o Brasil pode se orgulhar é de seu programa de imunização. Foi com ele que erradicamos a varíola, a poliomielite, o sarampo e a rubéola. E se algumas dessas doenças voltam a aparecer é porque os cuidados que as pessoas deveriam ter com elas caíram. E nada pior para esse cenário que uma nova revolta da vacina sendo capitaneada desde dentro do Palácio do Planalto.

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Atualmente, duas vacinas estão sendo testadas no Brasil: a de Oxford e a Sinovac, esta última da China. Não são experimentos secretos e nebulosos. Os estudos que as embasam estão sendo publicados e discutidos com transparência pela comunidade científica global. Centros de pesquisa respeitáveis e com tradição nacional acompanham e participam desse processo. Dentre eles o centenário Instituto Butantã. Tudo o que for desenvolvido passará por controle rigoroso de segurança e efetividade, e terá de ser aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Celerados, tanto a soldo quanto voluntários, apostam na desinformação de maneira a semear um clima de medo contra os potenciais efeitos de uma medicação que ainda nem está pronta. Alguns apontam até para urdiduras globais de dominação social. Ao dizer o que disse, Bolsonaro se associa a esse lixo. Essa gente acha o que? Que o sujeito vacinado sairá cantando o hino da internacional socialista em russo? A doença moral que vigora no centro do poder é hoje a maior disseminadora da doença física que se alastra e mata pelas ruas do país.

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