Que a imprensa livre sempre incomoda poderosos é fato conhecido por todos. Assim como é notório que calar a imprensa ou ao menos cercear seu poder de atuação é um dos mandamentos clássicos dos manuais dos ditadores. Mas o que fazer quando o cerceamento à imprensa livre pode vir envolto em supostas boas intenções, disfarçado de ações em favor da própria imprensa e do jornalismo? E pior, vêm justamente da corte máxima do país, que deveria em tese ser a guardiã dos direitos constitucionais, entre eles os que protegem o trabalho da imprensa e a expressão?
Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal firmou a tese pela qual veículos da imprensa e jornalistas podem ser responsabilizados pelas declarações dos entrevistados. Anteriormente, a corte já havia reconhecido que a imprensa pode ser responsabilizada pelo que dizem seus entrevistados, mas faltava estabelecer os critérios pelos quais se daria essa responsabilização, pois os ministros da corte tinham entendimentos diferentes. Acabou prevalecendo a tese de Alexandre de Moraes, que uniu trechos dos votos apresentados pelo presidente da corte, Luís Roberto Barroso, e por Edson Fachin.
O receio de ter de ficar à mercê das interpretações do Judiciário brasileiro pode levar a uma onda de autocensura dos veículos e jornalistas.
A tese começa mencionando que a imprensa “é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia, porém admitindo a possibilidade posterior de análise e responsabilização”. Depois cita casos já previstos de responsabilização por conteúdos publicados, como a calúnia e difamação, que ferem a honra e dignidade da pessoa. Nada mais correto. De fato, esse é o princípio básico não só da imprensa, mas também do próprio direito de expressão: temos a liberdade de expressar nossos pensamentos e ideias, mas somos responsáveis por eles e podemos, eventualmente, em casos definidos, ter de responder judicialmente por eles.
O problema é a continuação da tese. Sobre o ponto principal, ou seja, as entrevistas feitas por veículos da imprensa, o entendimento afirma que “na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.
Se os brasileiros em geral já andam com medo de serem criminalizados por suas preferências políticas, suas ideias e opiniões, agora o medo chega à imprensa.
O STF insiste que a tese não vai cercear a imprensa – o presidente da corte garantiu que apenas em casos de má-fé, ou seja, quando há intenção em prejudicar alguém, é que o entendimento poderia ser aplicado. Mas sabemos que no Brasil de hoje as coisas não são tão simples assim, em especial quando há um texto tão vago e passível de interpretações. Quem é que vai definir a existência de má-fé, estipular se já havia indícios de falsidade no que o entrevistado diz ou determinar se a imprensa deixou de “observar o dever de cuidado na veracidade dos fatos”? Todas essas perguntas serão respondidas pelo Judiciário brasileiro, o mesmo que viu “fake news” nas matérias que falavam que Lula apoiava o ditador da Nicarágua ou determinou que uma baderna em Brasília, feita por gente desarmada, foi uma tentativa de golpe de Estado.
E no caso das entrevistas ao vivo? O STF não as menciona, mas se a tese aplicar-se também a elas, qualquer entrevista ao vivo vai se tornar um risco para jornalistas e a imprensa como um todo. Nem mesmo um tradicional “fala povo”, uma simples entrevista na rua com um cidadão qualquer vai ser segura. E o que dizer das reportagens investigativas ou de denúncia? Na história brasileira muitos escândalos da política nacional só foram descobertos graças a revelações de entrevistados. A depender do entendimento do STF, apenas após investigar e comprovar tudo o que um entrevistado diz é que uma reportagem poderia ser publicada. Não é função da imprensa fazer o papel da polícia ou do Ministério Público – a imprensa pode dar espaço para que eventuais indícios de irregularidades sejam conhecidos; a investigação sobre elas cabe ao poder público.
O receio de ter de ficar à mercê das interpretações do Judiciário brasileiro pode levar a uma onda de autocensura dos veículos e jornalistas. Diante de tantos riscos, é muito mais seguro diminuir a produção de entrevistas, dar menos espaço para denúncias, principalmente quando envolverem algum poderoso, e focar as notícias nas fontes oficiais – políticos, membros do Judiciário, empresários e afins. Se os brasileiros em geral já andam com medo de serem criminalizados por suas preferências políticas, suas ideias e opiniões, agora o medo chega à imprensa.
A boa notícia é que esses pontos e incertezas ainda poderão ser redimidos. Embora a tese central tenha sido já anunciada, apenas após a publicação oficial do acordão do STF sobre a questão é que poderão ser feitas considerações mais apuradas. Pode ser que no acórdão o STF estabeleça definições mais concretas e menos genéricas e aborde a questão das entrevistas ao vivo. Ainda não sabemos. O que se sabe é que, do jeito que está, o entendimento do STF poderá ser um entrave significativo ao trabalho da imprensa livre e um afago generoso aos poderosos que não querem nunca ter seus desmandos questionados. É esperar para ver (e rezar para que o bom senso prevaleça).
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