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Em 2018, uma equipe de interventores federais criou um modelo para recuperar a segurança pública no Rio de Janeiro durante uma crise política, econômica e de criminalidade. Durante 319 dias de trabalho, eles recuperaram a capacidade de ação das polícias e reverteram uma onda de crimes que já durava seis anos. Principalmente, eles deixaram estudos e planos indicando o caminho a ser seguido.
Mas, ao assumir em 2019, o ex-governador Wilson Witzel (que sofreu impeachment por corrupção) jogou no lixo o modelo criado pelos interventores. Ele terceirizou parte do policiamento do Rio e trouxe a política de volta para dentro dos quartéis e delegacias. Muito do que havia sido conquistado foi perdido.
Na última sexta-feira (11), o general Walter Souza Braga Netto, interventor em 2018 e hoje ministro da Defesa, participou da entrega do último helicóptero comprado na intervenção federal. Ao todo, foram adquiridos 5,2 mil veículos e aeronaves novos, 4,6 mil armas (sendo 3 mil fuzis), 35 mil coletes à prova de balas, além de drones, kits de perícia técnica, entre outros aparelhos.
Três anos se passaram após o fim da intervenção federal no Rio. Mas o que sobrou daquela época não foram só as armas e os equipamentos. E sim um modelo multidimensional de enfrentamento da criminalidade e das facções criminosas e suas redes internacionais.
Nele, forças federais, estaduais, municipais, agências civis e os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário foram organizados para trabalhar de forma integrada. Ou seja, trata-se de uma abordagem que leva em conta as características e as necessidades dos conflitos no século XXI.
Durante a intervenção, os índices criminais, que estavam explodindo no Rio, pararam de subir. No final do ano, algumas quedas já eram registradas. Os homicídios caíram de 4.364 para 4.041 (-7,4%). Também houve diminuição em roubos (-7%), roubos de carga (-21%) e latrocínios (-36%). Essas quedas podem ter sido ainda maiores, pois no ano anterior a Polícia Civil fez greve e uma grande quantidade de crimes não foi registrada e não entrou na estatística.
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“Houve a redução de todos os indicadores de criminalidade e deixou-se um legado de planejamento estratégico para a continuidade do processo por nós iniciado”, afirmou o general de Exército, Richard Fernandez Nunes, secretário da segurança pública do Rio na época e hoje Comandante Militar do Nordeste.
A Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Rio (Fecomercio) fez um estudo e detectou a redução nas perdas do turismo na ordem de R$ 275 milhões devido às ações da intervenção. No Réveillon de 2018 para 2019, os hotéis registravam a capacidade máxima de ocupação.
Hoje, as estatísticas criminais no Rio apresentam tendência de queda, mas não é possível comparar os números com os da época da intervenção. A pandemia fez o crime de rua cair por causa dos lockdowns. Analistas acreditam que há uma criminalidade represada, que pode crescer com a retomada econômica.
Mas o que foi esse planejamento estratégico?
Os interventores fizeram uma avaliação dos problemas de segurança e definiram um plano de ação multidimensional para o Rio. Além de baixar as estatísticas criminais, o objetivo também era recuperar a capacidade da polícia operar.
Quando assumiram a tarefa, eles encontraram uma polícia que não tinha viaturas suficientes para patrulhar, os policiais tinham que revezar o uso de coletes à prova de balas e estavam organizados em uma cadeia de comando e distribuição no terreno que beiravam o caos. Ou seja, a polícia não tinha condições de cumprir seu papel.
O Rio vivia o resquício do fracasso da política de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). O programa foi promissor em 2008, mas acabou esticado além de suas capacidades durante as campanhas eleitorais do ex-governador Sérgio Cabral. Ou seja, acabou sucateado.
O processo de intervenção federal “foi desencadeado com sérias restrições: limitado à área da segurança pública, em um estado que já se encontrava sob regime de recuperação fiscal e devendo alcançar resultados no exíguo prazo de dez meses”, disse o general Richard Nunes.
O planejamento estratégico se focou nas áreas de organização e processos, treinamento e capacitação, compra de material por licitação, doutrina, educação, reorganização de pessoal e infraestrutura.
Este colunista acompanhou de perto os 319 dias de intervenção como repórter de rua no Rio.
Várias mudanças estruturais aconteceram naquela época. Em algumas regiões da capital, diferentes unidades da polícia tinham responsabilidade pela mesma área e outras ficavam sem cobertura policial. Isso foi corrigido. Da mesma forma, bases de UPPs que operavam de modo precário foram desativadas ou transferidas de local.
Cerca de 3 mil policiais dessas UPPs (que tinham recebido apenas treinamento de policiamento comunitário) foram capacitados em técnicas de combate urbano por militares das forças especiais. Enquanto esse processo acontecia, tropas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica assumiram o patrulhamento de rua.
Policiais que estavam afastados por motivos de saúde (de forma irregular) ou que haviam sido emprestados para os poderes Legislativo e Judiciário foram chamados de volta ao policiamento. Funcionários e policiais corruptos que atuavam em posições chave foram afastados. Operações policiais que estavam engavetadas por influência de políticos foram realizadas.
Mais de cem servidores foram treinados pela Escola de Inteligência Militar do Exército e foram criados protocolos de compartilhamento de inteligência entre órgãos policiais e agências.
Também foram feitos estudos logísticos para que os equipamentos adquiridos em 2018 não fossem sucateados por falta de manutenção. Os setores de logística das polícias Civil, Militar e da Secretaria de Administração Penitenciária foram reestruturados e equipados. Funcionários foram treinados em atividades administrativas e financeiras.
Para resolver problemas de pessoal e planos de carreira dos policiais, os interventores enviaram mais de uma dezena de projetos de lei para o Legislativo e firmaram acordos de cooperação com órgãos como o Ministério Público e o Tribunal de Justiça.
Além dos processos concretos de gestão, os interventores se dedicaram a frentes como construir confiança entre as instituições e resgatar valores e tradições das polícias.
Ou seja, a intervenção deixou acima de tudo um legado intangível, um modelo administrativo documentado que pode ser seguido por qualquer autoridade pública, segundo analistas ouvidos pela coluna.
Novo paradigma de defesa e segurança
Mas esse modelo de gestão de segurança criado pela intervenção federal pode extrapolar o Rio? Talvez ele possa servir como ponto de partida para discutir questões que andam esquecidas no Brasil, como: por que separar os conceitos de defesa nacional e segurança pública?
Por que não tratar a defesa do país e dos seus cidadãos de forma integrada e multidimensional, envolvendo os três poderes da República?
“Esse conceito de segurança pública e segurança nacional, essa perspectiva binária, ela é um conceito lá do século XVII”, afirmou o analista de defesa Alessandro Visacro, autor dos livros “Guerra Irregular” e “A Guerra na Era da Informação” (Editora Contexto).
“Ela surgiu do advento do Estado moderno, da paz de Westphalia, e por 300 anos atendeu muito bem. Mas é uma estrutura teórica que não consegue dar resposta para os desafios que nós temos hoje”, disse.
No modelo de segurança que prevalece no Brasil hoje, a União é responsável pelas Forças Armadas e pela defesa das fronteiras. Os governos estaduais comandam polícias civis e militares, com funções que se sobrepõem. Já as prefeituras têm guardas civis que por vezes agem como policiais militares. Essa divisão é determinada pela Constituição de 1988.
A Secretaria Nacional de Segurança, do Ministério da Justiça, tenta integrar os órgãos de segurança estaduais e municipais. A pasta pode liberar verbas, mas não tem poder de gestão sobre eles.
Cada governo estadual segue uma linha própria de segurança pública e poucos possuem planos estruturados para melhorar o trabalho de suas polícias. Não é incomum ver governadores culparem a União pela entrada de armas e drogas pelas fronteiras do país. Já o governo federal normalmente rebate a crítica afirmando que a entrada desses materiais não ocorreria se os governos estaduais reprimissem mais o crime organizado.
Segundo conceitos estratégicos do século XXI, as facções criminosas são atores armados não estatais que agem associadas a redes de ilícitos transnacionais. Elas criam enclaves de “microsoberania”, locais onde controlam a população e o terreno substituindo o Estado. Os exemplos mais conhecidos são as favelas do Rio de Janeiro, dominadas por facções criminosas rivais.
Segundo o analista, a luta contra essas facções não deve se resumir a retomar território ou desbaratar rotas de contrabando. Ela deve ser entendida como uma disputa para garantir a legitimidade do Estado frente à população.
“Deixamos um problema altamente complexo simplesmente nas mãos das nossas instituições policiais”, disse.
As lições da intervenção
A intervenção de 2018 é um recurso previsto na Constituição de 1988 que pela primeira vez foi colocado em prática. Ela teve uma característica peculiar: o comando das polícias e das Forças Armadas estava na mão de uma única pessoa, o general Braga Netto.
Em 2017, os roubos de carga estavam deixando o Rio em uma situação próxima ao desabastecimento e um confronto de facções de grandes proporções havia se iniciado pelo controle da favela da Rocinha.
O então presidente Michel Temer (MDB) determinou o uso das Forças Armadas para o combate à criminalidade no Rio, em uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Esse tipo de missão para os militares também está previsto na carta de 1988, e já é usado desde a década de 1990. O leitor deve lembrar, por exemplo, de episódios como a Eco 92 ou a ocupação do Complexo do Alemão pelas Forças Armadas em 2007 para a implantação de UPPs. Foram 140 operações desse tipo nos últimos 30 anos.
O fato é que, após a decisão de Temer, as tropas foram para as ruas em julho de 2017 para apoiar as polícias.
Meses depois, no Carnaval do ano seguinte, arrastões na praia de Ipanema, região nobre do Rio, foram filmados e acabaram na televisão. Temer e o então governador Luiz Fernando Pezão concordaram em tomar mais uma medida: nomear um interventor federal para a área de segurança pública, que o governador não conseguia mais controlar.
Braga Netto, que já comandava as Forças Armadas que estavam nas ruas do Rio em ação de GLO por ser o comandante militar do Leste, passou também a exercer o controle sobre a polícia, os bombeiros e a administração penitenciária.
Além disso, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, ofereceu apoio irrestrito ao interventor. “A credibilidade do Exército junto à população traz mais responsabilidades” era o tom. A instituição se voltou completamente para a missão, com tropas de elite de outros estados sendo enviadas ao Rio.
Mas, na prática, havia problemas agravando o cenário: o Rio passava por um processo de recuperação fiscal, ou seja, não podia fazer contratações de policiais, nem tinha credibilidade para tratar com fornecedores de equipamentos e veículos. Além disso, os interventores tinham só dez meses para reverter um cenário que vinha se agravando há anos.
A intervenção começou em fevereiro, mas o dinheiro, R$ 1,2 bilhão, só ficou disponível, na prática, em maio. Os cargos da intervenção só foram criados em julho. Foi uma corrida contra o tempo para fazer licitações e comprar tudo o que era necessário. Cerca de 97% dos recursos foram empenhados. O Rio recebeu investimentos em um ano superiores à soma do que tinha recebido nos cinco anteriores.
Com tropas nas ruas e comandando as polícias, os interventores foram muito criticados por organizações não governamentais e por parte da imprensa. O principal ponto era a elevação de 38% no número de suspeitos mortos durante operações contra o crime organizado.
As ONGs também criticaram o que chamaram de “militarização” da segurança pública.
Os interventores argumentaram que as mortes se elevaram porque as forças de segurança recuperaram sua capacidade de agir, e os criminosos optaram pelo enfrentamento.
O modelo da intervenção poderia ser repetido?
Este colunista apurou com autoridades que a intervenção poderia ter sido mais efetiva se tivesse controlado todas as áreas do governo, não só a da segurança. Isso porque nem o governo nem a prefeitura levaram melhorias sociais e serviços públicos suficientes para as favelas que eram alvo de operações dos interventores.
Pelo contrário, o então prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), aproveitou uma das ações para mandar escavadeiras destruírem barraquinhas em situação irregular em um mercado da favela da Vila Kennedy, subúrbio do Rio - enfurecendo a população e destruindo o trabalho dos interventores de demonstrar legitimidade. Crivella depois reconstruiu o mercado.
Porém, a discussão sobre a abrangência de uma intervenção não significa que há inclinação das autoridades para repetí-la atualmente.
Os militares enxergam sua participação na luta contra o crime, através das operações de GLO, apenas como um último recurso para uma situação emergencial. Eles desaprovam um eventual emprego prematuro das Forças Armadas em território nacional ou a criação de forma “banalizada” de missões de GLO, segundo apurou este colunista.
Durante o atual governo, as ações de GLO se restringiram a operações na selva amazônica.
Ministros do governo Bolsonaro, por sua vez, têm defendido outra linha de ação na segurança: eles querem aprovar o mecanismo jurídico chamado excludente de ilicitude.
Nele, são elencadas uma série de situações de legítima defesa na qual um policial ou militar não é punido caso mate um criminoso durante uma operação oficial. Essa medida não foi aprovada no Congresso em 2019. Seus críticos disseram que ela representaria uma autorização para a polícia matar impunemente.
Ao discursar na entrega do helicóptero, Braga Netto disse: “Reitero que garantir a proteção jurídica para os agentes do Estado não representa autorização para matar. Pelo contrário, é a garantia de que irão cumprir plenamente a sua missão de proteger a sociedade e depois retornar em paz aos seus lares”.
O excludente de ilicitude também é defendido pelo ministro da Justiça, Anderson Torres. Ele disse recentemente querer voltar a discutir a medida neste ano.
Assim, a intervenção federal do Rio em 2018 não deve ser repetida por ora. Porém, o modelo de integração e planejamento desenvolvido na época não precisa necessariamente ser implementado por um interventor, mas por qualquer gestor público ou governador.
Além disso, em um país que ainda não tem as ferramentas teóricas adequadas para avaliar ou lidar com o crime organizado, as lições aprendidas na intervenção federal podem ser um bom início de discussão. A política criada em 2018 foi destruída na prática por Witzel, mas os documentos e planejamentos estão aí.