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Jogos de Guerra

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Coluna semanal com reportagens exclusivas sobre assuntos militares, indústria bélica, forças armadas, zonas de conflito e geopolítica, com o jornalista Luis Kawaguti. Assista também à live semanal no canal do YouTube da Gazeta do Povo.

Guerra na Europa

Na batalha das narrativas, a Ucrânia não é o Iraque

Putin discursa na Praça Vermelha, em Moscou, ao lado dos líderes de ocupação das áreas ucranianas anexadas pela Rússia . (Foto: EFE/EPA/SERGEI KARPUKHIN/SPUTNIK/KREMLIN)

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Com a recente ordem de mobilização “parcial" de combatentes russos e a anexação de territórios invadidos na Ucrânia, a guerra parece ter cruzado uma linha a partir de onde não é mais possível retornar.

Diferentemente do sentimento em 24 de fevereiro, quando a queda de Kyiv era quase dada como certa, não é mais possível dizer quem vai vencer a guerra. Após a cerimônia de anexação de Kherson, Luhansk e partes de Donetsk e Zaporizhzhia na sexta-feira (30), o presidente russo Vladimir Putin sinalizou para o retorno à mesa de negociações de paz.

Mas isso ocorre em um momento em que os ucranianos detêm a iniciativa no campo de batalha e o presidente Volodymyr Zelensky respondeu que só negociará com o próximo presidente russo - sugerindo uma eventual queda de Putin. A invasão foi brutal demais para que a atual geração de ucranianos seja capaz de perdoar e esquecer.

Putin prepara seus contingentes de soldados recém-convocados para tentar prolongar a guerra ao máximo - à espera de que governos europeus caiam pela pressão da inflação e da crise energética, ou que um presidente mais amigável chegue à Casa Branca em 2024. Sua esperança é que o Ocidente corte o apoio econômico e militar que tem sido vital para a sobrevivência da Ucrânia.

Por causa disso, o destino de ucranianos e russos vai depender de um fator intangível muito importante: como o mundo vai encarar a partir de agora o apoio de Washington e de seus aliados europeus a Kyiv na guerra?

Dentro dos EUA e no sul global (grupos de países em desenvolvimento que inclui o Brasil), o envolvimento indireto de Washington na Ucrânia vem sendo comparado à segunda invasão americana ao Iraque, em 2003 - uma operação moralmente injustificável, que se baseava numa busca por armas de destruição em massa inexistentes.

Outra associação comum é com a retirada militar atrapalhada do Afeganistão em 2021 – após quase 20 anos de uma operação militar de resposta aos atentados de 11 de setembro que tinha embasamento legal, mas que gerou críticas sobre a legitimidade do intervencionismo norte-americano.

Parte dessas associações de imagem pode ser atribuída a um esforço de propaganda russo, inserido na atual guerra de informação e na tentativa russa de evitar o isolamento diplomático.

Mas a Ucrânia não é o Iraque de 2003. Dessa vez, o Ocidente não está envolvido em uma guerra de contrainsurgência para impor valores - ou simplesmente eleições - a uma cultura completamente diferente. Pelo contrário, está oferecendo apoio, indireto mas vital, para uma democracia estabelecida que luta para não ser anexada no projeto expansionista e autoritário da Rússia.

Em um artigo publicado na revista americana Foreign Affairs, o professor de história da Universidade de Yale Timothy Snyder comparou a situação atual na Ucrânia com o Acordo de Munique, de 1938 - episódio que ajudou a desencadear a anexação da Tchecoslováquia pela Alemanha e a Segunda Guerra Mundial.

Na ocasião, a Alemanha nazista reivindicava a posse dos Sudetos, um território da Tchecoslováquia onde havia maioria de alemães étnicos. O processo aconteceu de forma semelhante ao que a Rússia faz com a Ucrânia hoje. Hitler acusava a democracia tcheca de autoritarismo e de violações de direitos de alemães étnicos que viviam em seu território. Putin faz o mesmo com a Ucrânia.

Segundo Snyder, a Tchecoslováquia tinha forças armadas decentes, a melhor indústria de armas da Europa e defesas naturais melhoradas pela construção de linhas de fortalezas nas montanhas. Segundo o historiador, talvez a Alemanha não tivesse conseguido bater os tchecos em uma guerra aberta, ou ao menos teria tido uma grande dificuldade para fazê-lo - isso se a Tchecoslováquia tivesse recebido apoio de seus aliados da época, a França e o Reino Unido.

Mas Édouard Daladier (então premiê da França), Neville Chamberlain (premiê do Reino Unido) e Benito Mussolini (líder da Itália) decidiram entregar os Sudetos a Hitler para apaziguá-lo, sem ao menos deixar o governo tcheco participar das negociações. Esse foi o pacto de Munique.

Winston Churchill, um dos maiores críticos de Chamberlain à época, afirmou na ocasião: “Você pôde escolher entre a guerra e a desonra. Você escolheu a desonra e vai receber a guerra”.

Após tomar os Sudetos sem combate, a Alemanha anexou toda a Tchecoslováquia. Com as armas pilhadas no país, invadiu em seguida a Polônia e sua campanha militar ganhou momentum - o que atraiu aliados e deflagrou a guerra.

Snyder especula que, se Hitler tivesse enfrentado uma batalha dura na Tchecoslováquia, talvez o apelo popular de seu regime tivesse sido menor e o Reino Unido e a França teriam tido tempo de se preparar para o combate. Isso eventualmente poderia ter impedido a deflagração da Segunda Guerra.

Putin está enfrentando uma batalha dura na Ucrânia. Para o historiador, o mundo pode estar hoje em um cenário semelhante ao de 1938 - com a diferença de que o Ocidente dessa vez decidiu agir e mandar socorro a uma democracia colocada em xeque por um regime autoritário.

Mas, para se evitar uma guerra nuclear, o apoio vem sendo em forma de sanções e isolamento de Moscou, além de remessas de recursos financeiros, armamentos e informações de inteligência - sem o envio de tropas.

Não é possível saber com certeza até onde vai o apetite expansionista de Putin. Ele invadiu a Geórgia em 2008 e ao fazer isso percebeu que suas Forças Armadas precisavam ser modernizadas. Isso foi implementado de forma parcial. Em 2014, anexou a Crimeia e fomentou movimentos separatistas no Donbas ucraniano.

Sabe-se, por meio de ensaio publicado por ele em 2021, que suas ambições são inspiradas em uma visão distorcida da história, segundo a qual a Rússia atual teria “direito natural" de dominar uma série de territórios vizinhos. Este foi o tema da nossa coluna na semana passada.

Em discurso na sexta-feira, ele disse que “gerações de russos” já lutaram pelas terras em processo atual de anexação na Ucrânia. Isso seria uma possível referência à expansão militar promovida pela imperatriz Catarina II no século 18. Putin também classificou o Ocidente como “inimigo” e uma ditadura de elites voltadas contra todas as sociedades, que professam uma religião satanista.

No seu ensaio do ano passado, o presidente russo lamentou decisões do período soviético tomadas por Lenin, que separaram diversas regiões que ele acreditava serem por direito da Rússia.

Se os planos de Putin forem retomar os territórios do que chama de “Rússia histórica”, então cidadãos de países como Estônia, Letônia, Lituânia, Finlândia, Polônia, Belarus, Ucrânia, Moldávia, Geórgia, Armênia, Azerbaijão, Cazaquistão, Quirguistão, Turcomenistão e Tadjiquistão devem ter razão para se preocupar. Também é uma incógnita se Putin desejaria reaver essas áreas militarmente ou por meio de influência política ou instalação de governos títeres.

Putin está preparando mais 300 mil homens para enviar à Ucrânia. Mas há indícios no próprio decreto de mobilização parcial (que tem artigos secretos) de que o número pode passar de um milhão de soldados - o que dobraria o efetivo das Forças Armadas da Rússia. Não se mobiliza um contingente assim só para fazer pressão diplomática.

As tropas podem ser destinadas a manter as regiões já conquistadas na Ucrânia - e sufocar movimentos de resistência - ou podem ser usadas em novas ofensivas que podem até extrapolar o território ucraniano.

Estado totalitário

Mas ao formar esse novo exército, Putin quebra um acordo informal que tinha com o povo russo: “impunidade para as ações do governo em troca de privacidade e prosperidade para os cidadãos”.

Na medida em que os recrutadores batem nas portas dos cidadãos russos, o debate político volta à sociedade. As trapalhadas do início da mobilização parcial - como a convocação de deficientes e idosos - coloca em evidência a incompetência e a falta de determinação dos militares russos e alimenta ainda mais o nascente debate político.

Para continuar com a formação de seu novo exército, Putin terá que endurecer ainda mais os instrumentos de repressão às liberdades individuais do país. Ele terá, por exemplo, que evitar mais episódios de incêndios de centros de recrutamento e assassinatos de recrutadores. Se não fizer isso, pode perder a capacidade de governar. A Rússia vai se tornar cada vez mais um Estado totalitário e policial.

Assim, uma eventual vitória russa na Ucrânia pode significar o fortalecimento não só de Putin e de seu projeto expansionista, mas estimular a proliferação de outros governos autocráticos, classificados por Snyder como “tirânicos”.

Ou seja, segundo o historiador, o resultado dessa guerra vai estabelecer os princípios das relações diplomáticas do século 21 e influenciar diretamente o futuro das democracias.

Além disso, se a Ucrânia e seus aliados do Ocidente não forem capazes de reconquistar Kherson, Luhansk, partes de Donetsk, Zaporizhzhia e a Crimeia (tomada pela Rússia em 2014), o mundo pode retornar a uma era mais violenta, que até então tinha praticamente acabado junto com a Segunda Guerra: a era das guerras motivadas por conquista territorial.

Os piores aspectos desse tipo de guerra são os efeitos sobre a população civil - que sempre acaba submetida a políticas de repressão e até é alvo de políticas de retirada ou aniquilação para diminuição de densidade populacional de determinadas áreas.

Alguns desses aspectos já ocorreram nos sete meses de guerra na Ucrânia. Alguns exemplos são o bombardeio indiscriminado de alvos civis e militares em Mariupol e Kharkiv e a alegada remoção forçada de contingentes populacionais ucranianos inteiros de áreas ocupadas e sua transferência para o interior remoto da Rússia.

Ameaça nuclear

A última tentativa de ressuscitar esse tipo de conflito para expansão de territórios havia sido feita pelo Iraque, ao invadir o Kwait em 1990. O país acabou expulso do território vizinho por uma coalizão ocidental.

Mas o Iraque não tinha armas de destruição em massa, como se provou na desastrada invasão americana seguinte, em 2003. A Rússia, por outro lado, é a detentora do maior arsenal nuclear do planeta e vem ameaçando usá-lo caso as áreas recentemente anexadas sejam atacadas.

Embora as ameaças tenham que ser tratadas com seriedade, é pouco provável que a Rússia quebre o chamado “tabu nuclear”, mesmo se utilizar uma bomba de natureza tática (de menor poder de destruição). Isso porque tal ação poderia levar a OTAN (aliança militar ocidental) a participar diretamente do conflito, com o envio de tropas, navios e aeronaves. Esse é um cenário que Putin quer evitar.

As recentes ameaças de usar bombas nucleares parecem mais uma tentativa russa de dissuadir o Ocidente de enviar armas convencionais ainda mais poderosas para a Ucrânia.

Se não conseguir um acordo de paz para dizer que a Rússia venceu a guerra ao anexar 20% do território ucraniano, Putin vai tentar estender o conflito usando mais recrutas e armas convencionais.

Críticos do Ocidente podem argumentar que a indústria americana está lucrando ao vender armas para serem usadas na guerra da Ucrânia e exportar gás para o mercado europeu.

O Reino Unido e a União Europeia, por sua vez, já estão se endividando para tentar lidar com a escassez de energia e a inflação em crescimento, resultantes das sanções à Rússia.

Mas, do ponto de vista do Ocidente, se Putin não for detido agora, o que está em jogo não é só a economia, mas o próprio futuro da liberdade dos povos e da democracia - diante do autoritarismo e do expansionismo por vias militares da estratégia russa.

O desafiador ato de anexação realizado pelos russos na última sexta-feira deve levar as potências ocidentais a avaliar a viabilidade de medidas como a inclusão da Ucrânia na OTAN (o que legalmente é bem complicado), a imposição de um teto mundial de preços para exportação de petróleo ou o envio de armas ainda mais potentes para a Ucrânia.

Por isso, é esperado que Washington e seus aliados tentem retratar cada vez mais seu apoio indireto à Ucrânia como parte de uma guerra justa, desvinculada das campanhas de contrainsurgência do século 21 no Oriente Médio. Para ter sucesso, eles deverão mostrar que o apoio à Ucrânia pode parar a Rússia agora e assim impedir (e não deflagrar) uma Terceira Guerra Mundial.

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