José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

O livro roubado. Ou: tomara que o Bira não leia esta crônica

José Carlos Fernandes
12/05/2021 16:21
Não sei ao certo quando foi a primeira vez que ouvi falar do escritor Roberto Gomes. Suspeito que, na ocasião, os dinossauros catavam frutas no topo das árvores da minha rua, a Brasílio Itiberê. A única informação que posso dar com certeza é que para mim, por muito tempo, Gomes ocupou o posto de desconhecido onipresente, o papel de “o homem que estava lá”.
Uma das lembranças mais antigas vem dos anos em que morei em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. No intervalo de uma aula, algo assim, um amigo de faculdade de Filosofia – o João Ubiratan – sacou um exemplar do ensaio Crítica da razão tupiniquim, uma edição branca com detalhes em vermelho, e disparou. “O autor deste livro é lá da tua terra. Conhece?” Não sei se respondi “nunca vi mais gordo” ou se menti. O fato é que devorei Crítica como se fosse uma manga madura... Nunca mais deixei de citá-la; e guardo até hoje o exemplar do Bira comigo. Juro pela vovozinha que não foi roubo, foi furto.
Muita água rolou, até o dia em que Roberto Gomes se tornou meu vizinho. Mudou-se para a casa grande que pertenceu ao educador Erasmo Pilotto, na Rua Ângelo Sampaio – na companhia da socióloga Íria Zanoni, com quem estava casado, do filho João Marcelo e de huskys siberianos lindos de dar inveja. Acabamos nos aproximando. Foi bacana a ocasião em que disse a ele, no ponto do ônibus, que estava indo para a PUC, dar minha primeira aula. “Vá, mas nunca vire professor”, aconselhou. Quando falo demais da conta ou acredito ter explicação para tudo, entendo o que ele quis dizer.
Há pouco mais de um mês, ao entrevistar o romancista e poeta Marcelo Labes, para esta coluna, foi a minha vez de dar uma de Bira. “Você conhece o Roberto Gomes? É da tua terra, Blumenau”. Labes não sabia que se tratava de um conterrâneo, mas tinha acabado de comprar num sebo uma edição antiga de Crítica da razão tupiniquim, justo a de capa branquinha com detalhes em vermelho. Fiz o papel da Candinha, provocando Gomes & Labes a trocarem zaps, mas não sei o rumo da conversa. Escritores, como se sabe, se odeiam por antecedência.
A propósito, Roberto Gomes chegou a Curitiba pouco mais do que um menino, em 1964, reforçando a tradição dos artistas catarinenses que se fazem no Paraná. Lá se vão 57 aos de exílio curitibano desse blumenauense. Mas essa é outra história.
Quero é contar que por esses dias, assaltado pelas coincidências, abri a mão de vaca e emprestei minha edição furtada de Crítica... a um aluno, que é cubano. Não o fiz sem antes ameaçá-lo com um portunhol medonho, capaz de ressuscitar o Cabeza de Vaca: “Sí no me devolveres, es un hombre muerto”. Segundo versão do próprio Alejandro, o certo seria: “Sí no me devuelves, eres un hombre muerto”. E o guri seguiu viagem, mas não sem antes, ai, ouvir o “professor” tagarelar debaixo de meia dúzia de TDAHs pandêmicas.
Apresentar um afeto a alguém é um dos prazeres da maturidade. Contei-lhe que o autor daquele livro – agora meu ex- -vizinho – fundou com Íria e Cristovão Tezza a Criar Edições, um marco da editoração no país. Dali o próprio Tezza saltou para a imortalidade. Helena Kolody passou a fronteira de São Paulo. Valêncio Xavier conheceu a glória. Acrescentei que da obra assinada por Roberto, amo a novela Alegres memórias de um cadáver – sobre as mesquinharias que grassam as universidades. Adiantei que Gomes podia se dar por satisfeito por ter escrito Júlia – um romance extraordinário sobre a poeta paranaense Júlia da Costa (1844-1911). Não leu? Não viveu.
Em tempo. Roberto anda meio sacudo com tudo em geral, a literatura em particular. Mas confidenciou que escreve sobre sua cidade natal. Depois de quase seis décadas, pela palavra, suspeito que está voltando para casa.