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Ao longo das últimas décadas, a polarização política deixou de ser um assunto restrito a teses da academia e se tornou uma questão central na vida brasileira. Virou tema de debates acalorados nas tribunas do Congresso, nos meios de comunicação, nas reuniões de família, nas redes sociais e até nas mesas de bar.
Tudo se transformou num Fla-Flu: esquerda ou direita, pró-Lula ou antiLula, pró-Bolsonaro ou antiBolsonaro, pró-Estado ou antiestado, woke ou antiwoke, pró-polícia ou pró-bandido, pró-Israel ou pró-Hamas. E, apesar de muita gente acreditar que a polarização é um mal para a sociedade, ela representa um fenômeno do nosso tempo, com o qual temos de conviver, de um jeito ou de outro, por mais incômodo que isso possa ser.
No Brasil de hoje, porém, a grande polarização, a que separa amigos, familiares, colegas de trabalho e até casais, não é tanto a ideológica, com a qual já aprendemos a lidar, em maior ou menor grau, com o passar dos anos. É sobretudo a institucional, que se sobrepõe às nossas convicções, na política e nos costumes, e passa por cima da Constituição e dos códigos legais.
A polarização que realmente divide os brasileiros hoje é a que opõe quem resiste às arbitrariedades cometidas pelo STF (Supremo Tribunal Federal), especialmente pelo ministro Alexandre de Moraes, e quem apoia ou passou pano para o regime de exceção que se instaurou no país “pela democracia”, sob a justificativa de que era preciso enfrentar um suposto “golpismo” do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seu grupo político.
A turma do 'foi tudo por uma boa causa' – que diz, de cara lavada, que as transgressões cometidas pelo STF eram necessárias e que agora, com as condenações de Bolsonaro e de seus aliados, 'o gênio deve voltar à lâmpada'– merece um capítulo à parte nessa história, como cúmplice do arbítrio
A polarização que separa os brasileiros hoje é a dos que defendem o respeito aos ritos processuais e a igualdade de todos os brasileiros perante a lei, em qualquer circunstância, e dos que abraçam a aplicação seletiva dos dispositivos legais, para perseguir adversários que querem extirpar da vida nacional.
É entre os que defendem a independência dos Poderes, a atuação do STF como Corte constitucional e uma anistia ampla geral e irrestrita para os condenados pela suposta “tentativa de golpe” e pelos “atos antidemocráticos de 8 de janeiro e os que legitimam a ditadura da toga que legisla no lugar do Congresso, apoiam a cassação de parlamentares protegidos pela imunidade de seus cargos e bradam “sem anistia” em shows de MPB e em atos públicos do PT e do PSOL.
É, enfim, a polarização entre os que defendem os direitos individuais e a liberdade de expressão como valor universal e os que querem impor novamente a censura, para calar vozes divergentes, aplaudem restrições a manifestações públicas de desagravo aos perseguidos pelo STF e acham que é tudo bem se tornar alvo de processos na Justiça por dar uma opinião nas redes sociais.
“Por uma boa causa”
A turma do “foi tudo por uma boa causa” – que diz, de cara lavada, que as transgressões cometidas pelo STF eram necessárias e que agora, com as condenações de Bolsonaro e de seus aliados, “o gênio deve voltar à lâmpada”– merece um capítulo à parte nessa história, como cúmplice do arbítrio. Certamente, ela não sairá ilesa desse processo e será chamada à responsabilidade no devido tempo, se e quando o país retornar à normalidade democrática.
Fazem parte do grupo editorialistas de grandes veículos de comunicação, jornalistas, juristas e economistas bem cotados e os “isentões” de forma geral, que acabam por avalizar o arbítrio, ainda que indiretamente, com a desculpa de que não apoiam nem um lado nem outro. Fazem parte do grupo também os zumbis do tucanato, que tentam ressuscitar o PSDB das cinzas ou se dispersaram por outras siglas, como o ex-governador mineiro Aécio Neves e o governador gaúcho Eduardo Leite, cuja candidatura à presidência em 2026 se tornou uma espécie de sonho de consumo dessa galera ou de boa parte dela.
É aquele pessoal que hoje afirma em coro, como num jogral bem ensaiado, que o STF recebeu um “salvo-conduto” para suspender o Estado de Direito; que a Vaza Toga – divulgada por jornalistas independentes e apurada com o esmero dos profissionais que honram a pena – foi “a versão golpista da Lava Jato”; que “a condenação dos golpistas tem de ser o fim de um ciclo de exceção”; e que “depois de superar o golpismo, o Brasil precisa enfrentar os limites do Supremo”.
Em muitos aspectos, eles são até mais perigosos do que os que defendem os abusos de forma incondicional – reunidos no PT e em seus satélites – e que querem manter e até aprofundar a “parceria” com o STF, para impor sua agenda ao país, à revelia do Congresso e da Constituição. Por se considerarem como “reserva moral” da nação, julgam-se protegidos de questionamentos sobre suas posições, apesar de terem feito vistas grossas e até endossado tudo isso que está aí, por ódio a Bolsonaro e ao bolsonarismo.
Não precisa ser bolsonarista para estar do lado certo da história. Basta ser um democrata digno do nome, que não abre exceções para o arbítrio, mesmo que seja contra seu pior inimigo, e não um golpista de fato travestido de defensor da democracia, que admite a concessão de “poderes extraordinários” ao STF em nome sabe-se lá de quem.
Pode ser que o ministro Gilmar Mendes considere tal posição como “ingênua”. Como ele afirmou recentemente em entrevista à BBC “é ingenuidade achar que transformar o Supremo em convento traria credibilidade”. Que seja, então. Mas, para quem lutou pelas diretas-já, pela anistia, pela Constituinte e pelo fim da censura no fim dos anos 1970 e no início dos anos 1980, não dá para aceitar passivamente os rumos autoritários que o Brasil está trilhando. É triste, muito triste, ver a que ponto chegamos 40 anos depois da redemocratização e assistir à chamada “Constituição Cidadã” de 1988 ser vilipendiada à luz do dia.
Normalmente, terminaria a coluna aqui, com os considerações feitas acima.
Não posso finalizar, porém, sem falar algumas palavras sobre o meu papel pessoal nisso tudo. Alguns apoiadores de Bolsonaro e integrantes do “núcleo duro” do bolsonarismo falam que eu contribui para esse estado de coisas, com a reportagem que produzi para o Estadão em 16 de março de 2019, a primeira publicada na grande mídia sobre a rede digital de difamação do grupo contra ex-aliados e críticos da direita que procuravam atuar de forma independente.
Até hoje, quando produzo qualquer coisa contra o arbítrio do STF e em defesa da liberdade de expressão, sou alvo de comentários agressivos e difamatórios nas redes sociais por causa dessa reportagem, que trazia também uma lista dos principais integrantes do grupo. Dizem que eu fiz “o serviço sujo” para o STF, ao atuar como “dedo-duro” da turma, e que alimentei os inquéritos ilegais e a sanha punitiva da Corte contra Bolsonaro e seus aliados.
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Aproveito, então, a oportunidade, para reforçar aqui – como já fiz na primeira coluna que produzi para a Gazeta do Povo, no início de agosto, na qual abordava o caso dos abusos cometidos por Moraes contra Filipe Martins, ex-assessor de Assuntos Internacionais de Bolsonaro – que em nenhum momento defendi na reportagem ou em qualquer outra ocasião qualquer censura ou punição a quem quer que seja por expressar suas opiniões. Sempre acreditei – e continuo a acreditar – que os códigos legais em vigor já oferecem a proteção necessária para quem se sentir lesado civil ou criminalmente pelas afirmações e ações de terceiros.
Na reportagem – apurada com rigor, como costumo fazer em meus trabalhos, e na qual menciono diversos casos concretos de linchamento virtual pelo grupo – procurei apenas exercer o meu papel de informar o público, de forma independente de partidos e correntes políticas, sobre os acontecimentos e as grandes tendências em curso no Brasil e no mundo.
Não tive na época nem em nenhum outro momento qualquer contato com ministros do Supremo para tratar do assunto. Tampouco tive contato com parlamentares da CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito), instaurada apenas em julho daquele ano, com a qual também sou acusado de ter colaborado. Nem faz parte da minha índole me prestar a esse papel.
O inquérito das fake news, inclusive, só foi instaurado de ofício pelo ministro Dias Toffoli em 14 de março de 2019, dois dias antes da publicação da reportagem, e o ministro Alexandre de Moraes só foi designado relator em 20 de março, quatro dias depois. Sinto-me à vontade, portanto, para abordar os abusos do Supremo e defender os direitos individuais e a liberdade de expressão no país, em linha com a posição que sempre adotei, como no caso desta coluna sobre a polarização em torno das ações arbitrárias cometidas pela Corte nos últimos anos.




