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A usina de narrativas do PT é realmente um fenômeno. Se há alguma coisa para a qual a gente tem de tirar o chapéu para o PT é a sua capacidade de produção de narrativas, que pouco ou nada têm a ver com a realidade, para propagar uma visão dos acontecimentos que lhe seja favorável.
Vale tudo para ganhar a opinião pública: a terceirização de responsabilidades pelos próprios fracassos, a divulgação de dossiês espúrios, a compilação seletiva de dados oficiais, o uso descarado de fake news e outros expedientes do gênero que a “criatividade” das lideranças petistas e de sua tropa de choque possa idealizar.
Um exemplo emblemático dessa postura é a narrativa petista sobre a “obra” de Lula 3 na economia, que tem no ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o seu grande artífice, em especial no que se refere às contas públicas. Contra todas as evidências, que revelam uma deterioração fiscal sem precedentes no atual governo, Haddad tenta impulsionar, na caruda, como se diz por aí, a versão de que a sua gestão é um sucesso neste quesito.
“Leio os jornais e fico com a impressão de que estamos vivendo uma crise fiscal. É um delírio que gostaria de compreender do ponto de vista psicológico, porque, do ponto de vista econômico, eu não consigo”, afirmou Haddad no início de novembro, diante das criticas cada vez mais contundentes ao descontrole das contas governamentais. “Estou louco para ver uma ata do Banco Central dizendo que estou fazendo um esforço fiscal relevante, mas meu dia vai chegar”, acrescentou pouco depois, ao comentar a decisão da instituição de manter a taxa básica de juros (Selic) em 15% ao ano, a mais alta em duas décadas.
Mas o autoengano de Haddad em relação à real situação da contas públicas – um comportamento que o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, costuma chamar de “negacionismo fiscal” – não resiste se quer a um exame superficial da questão. Ninguém precisa ser Ph.D. em economia para enxergar o que está acontecendo.
Apesar da arrecadação recorde, que deu um salto de 10% em termos reais (descontada a inflação) desde o início do governo Lula, em decorrência da obsessão de Haddad com o aumento de impostos, o país deverá fechar 2025 com as contas no vermelho. Segundo o relatório Prisma Fiscal, produzido pelo Ministério da Fazenda com base nas expectativas dos economistas das instituições financeiras, o déficit primário (receitas menos despesas, excluídos os juros da dívida federal) deverá chegar a R$ 70 bilhões, o equivalente a cerca de 30% de todo o orçamento para a educação pública no ano. Em relação ao PIB (Produto Interno Bruto), o rombo deverá ficar em 0,5%, de acordo com o boletim Focus, elaborado pelo Banco Central (BC),também com base em previsões de mercado.
Haddad pode até fazer jus à tradição do PT de gerar narrativas fantasiosas e propagá-las, sem o menor constrangimento, como se fossem verdade absoluta. Mas, diante dos dados reais das contas públicas do país, só mesmo seus aliados e a militância do PT para sustentar a sua versão dos fatos
Se confirmados, tais resultados ficarão bem acima da meta de déficit zero, prevista no tal arcabouço fiscal idealizado por Haddad e aprovado pelo Congresso, e mesmo acima do teto da meta, de 0,25% do PIB ou R$ 31 bilhões, tanto no caso da projeção da Fazenda quanto na do BC.
Mesmo a previsão oficial mais recente, de R$ 34 bilhões de déficit em 2025, considerada excessivamente otimista por muitos analistas, ultrapassa o teto da meta, que foi flexibilizada no ano passado, quando o governo desistiu de buscar o superávit previsto para este ano, de 0,25% a 0,5% do PIB, na versão original do arcabouço.
Ainda assim, qualquer que seja o resultado final, ele só será alcançado por causa da exclusão de uma série de despesas do resultado primário pelo governo. Segundo um levantamento feito pela Gazeta do Povo, os gastos feitos pela atual gestão fora das metas fiscais já alcançam R$ 337 bilhões desde a posse de Lula, em janeiro de 2023, e devem chegar a R$ 400 bilhões até o fim de 2026. R$ 400 bilhões fora das regras do jogo, minha gente! Não é por acaso que ninguém mais leva a sério o resultado primário e o arcabouço fiscal de Haddad.
Esses abatimentos podem até maquiar as finanças governamentais, mas o crescimento da dívida pública é mortal para a narrativa ilusionista de Haddad, de Lula e do PT, de que não existe crise fiscal no país. Só nos primeiros três anos da atual gestão, a dívida pública passou dos 71,7% do PIB registrados no fim do governo Bolsonaro, em 2022, para 78,1% em setembro.
Para 2026, a previsão do próprio Tesouro é de que ela chegue a 82,5% do PIB – a mais alta em todos os tempos, exceto pelo índice registrado em 2020, no auge da pandemia. Na época, os gastos subiram muito, em decorrência dos programas de auxílio do governo, mas caíram de forma significativa nos dois anos seguintes, ficando abaixo até do nível pré-pandemia.
É certo que uma parcela considerável desse aumento na dívida se deve à elevada taxa de juros em vigor hoje no país. Boa parte, no entanto, deve-se ao aumento dos gastos primários do governo, que passaram de 18,1% do PIB, conforme dados do Tesouro, para 18,9% em 2025 – um salto real de 4,5% no período.
É justamente por causa dessa gastança sem lastro, que turbina de forma artificial a economia e mantém a inflação acima do centro da meta, de 3% ao ano, que o BC vem mantendo a taxa básica de juros (Selic) na estratosfera, mesmo que o atual presidente da instituição, Gabriel Galípolo, tenha sido indicado pelo próprio Lula, na expectativa de maior leniência na gestão da política monetária.
Esse coquetel indigesto acaba alavancando também o gasto do governo com o pagamento de juros da dívida, cujo total passou de R$ 1 trilhão nos últimos 12 meses, até setembro. “Entendo que é legítimo todos os ramos da sociedade poderem se manifestar sobre a política monetária”, disse Galípolo, num evento realizado há duas semanas. “Todo mundo pode brigar com o BC, mas o BC é que não pode brigar com os dados.”
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Além de pintar um quadro idílico da situação fiscal do país, que só ele e sua claque conseguem ver, Haddad tem dito que muito dos desafios enfrentados pelo governo Lula na administração das contas públicas se devem à “herança maldita” recebida do ex-ministro Paulo Guedes.
Quando confrontado com os dados efetivos, de que Guedes deixou um superávit de R$ 54,9 bilhões em 2022, equivalente a 0,6% do PIB, e uma dívida pública bem abaixo da atual, Haddad costuma citar o “calote” da ordem de R$ 100 bilhões que o ex-ministro de Bolsonaro teria dado nos precatórios– um número que não encontra registro na contabilidade oficial.
Na verdade, segundo informações apuradas com ex-integrantes da equipe de Guedes, o valor de precatórios rolados pelo governo anterior foi de cerca de R$ 30 bilhões, equivalente a menos de 10% do déficit total do governo Lula em 2023, de R$ 246, 5 bilhões, pela contabilidade do TCU (Tribunal de Contas da União).A parcela restante dos R$ 100 bi mencionados por Haddad já se referem, conforme as informações da equipe econômica anterior, a precatórios do governo Lula, de 2023 e 2024.
De acordo com um estudo preparado pelos economistas Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Alexandre Manoel e Samuel Pessôa, Guedes entregou as finanças públicas em situação melhor do que encontrou. O estudo aponta que em sua gestão o chamado “déficit fiscal estrutural” foi reduzido de 1,2% do PIB, no fim do governo Temer, para 0,7% do PIB em 2022, mesmo com a pandemia no meio do caminho.
Como se tudo isso não bastasse, Haddad ainda tem citado dados do FMI (Fundo Monetário Internacional), pelos quais o Brasil teria feito o sexto maior ajuste fiscal do mundo e o terceiro maior entre os países emergentes, para reforçar sua narrativa de que está tudo às mil maravilhas com as contas públicas do país.
Em sua versão fantasiosa, porém, ele “esquece” de explicar que, pelos números do FMI, cuja metodologia inclui os títulos do Tesouro em poder do BC, a dívida pública passou de 83,9% do PIB em 2022 para 90,5% do PIB hoje, um patamar bem mais alto que o de outros países em desenvolvimento.
Haddad, como se vê, pode até fazer jus à tradição do PT de gerar narrativas fantasiosas e propagá-las, sem o menor constrangimento, como se fossem verdade absoluta. Mas, diante dos dados reais das contas públicas do país, só mesmo seus aliados e a militância do PT para sustentar a sua versão dos fatos. No fim da contas, é Haddad quem vai deixar uma verdadeira “herança maldita” para o seu sucessor na Fazenda e para o próximo presidente da República, seja quem for, ainda que ele, Lula e sua turma jamais admitam isso, mesmo entre quatro paredes.




