Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Exploração comunista

A cegueira sindical brasileira

Exploração real, diagnóstico torto: sindicalista culpa o capitalismo enquanto a fábrica segue a cartilha comunista que explora trabalhadores. (Foto: Lukas Coch/EFE/EPA)

Ouça este conteúdo

Circula nas redes sociais um vídeo que mostra uma trabalhadora denunciando as condições “desumanas” em uma fábrica da BYD no Brasil. Ela afirma que os funcionários trabalham horas extenuantes, comem comida fria, bebem água quente, recebem salários injustos e cumprem jornadas além do permitido pela legislação. Até aqui, nada de novo: denúncias assim são comuns em qualquer país e devem ser investigadas com rigor. O que chama atenção, porém, não é o conteúdo da queixa, mas a contradição.

Em dado momento, a trabalhadora pede justiça aos trabalhadores, o fim da exploração dos patrões e, como solução, clama por uma “revolução socialista”. O paradoxo é evidente e quase cômico, não fosse trágico. A retórica revolucionária mira um suposto patrão capitalista, mas ignora o fato de que o “patrão” é uma empresa satélite de um regime comunista.

A fábrica é chinesa. E a China, ao contrário do que sugere a fantasia romântica de alguns setores do sindicalismo brasileiro, não é um laboratório do “capitalismo puro”, mas um regime comunista de partido único que opera a partir de um sistema híbrido: capitalismo para fora, socialismo autoritário para dentro.

A BYD é formalmente uma empresa privada. Mas, na China, “privado” é apenas um adjetivo sujeito à conveniência do Estado-Partido. A ascensão meteórica da montadora, que já é uma das maiores do mundo no setor de veículos elétricos, não é fruto da livre competição, mas de bilhões em subsídios, isenções, proteção estatal e uma política industrial que escolhe vencedores.

Empresas estratégicas são tratadas como extensões do regime. Não é por acaso que fábricas e centros de pesquisa se espalham pelo mundo como braços de uma política de influência econômica e tecnológica.

Quando um sindicalista brasileiro descreve a BYD como se fosse uma representante do “capitalismo selvagem”, confessa uma ignorância descomunal. Isso se torna ainda mais bizarro quando a crítica vem acompanhada de um pedido de revolução rumo ao socialismo.

A retórica socialista usada para denunciar a exploração acaba servindo para ocultar a verdadeira natureza do explorador.

VEJA TAMBÉM:

Os trabalhadores baianos já estão vivendo sob a chibata do Partido Comunista Chinês e nem se dão conta. Pedem como remédio justamente o que lhes faz mal

É como quem pensa que, pelo fato de ser líquida como a água, a gasolina também serve para apagar o fogo.

A crítica se dirige ao “patrão” abstrato, como subproduto do discurso anticapitalista que tinge de malfeitor todo aquele que produz e gera empregos.

Esse tipo de cegueira seletiva não é novo. Parte do movimento sindical brasileiro ainda repete slogans que sobreviveram à queda do Muro de Berlim, como se a história tivesse parado em 1989.

Enquanto isso, a China transformou o comunismo em uma engrenagem de eficiência industrial combinada com vigilância total, repressão política e controle absoluto sobre sindicatos, que lá não existem como aqui. Sindicatos independentes são ilegais. Protestos são dissolvidos. Não há direito de organização — e muito menos “revolução”. Há apenas o Partido.

É sintomático, portanto, que a trabalhadora clame por uma revolução socialista contra a exploração que vem de quem já fez essa revolução e se tornou expert em escravidão.

A contradição é pedagógica. Ela revela como parte da militância brasileira se habituou a culpar as distorções do capitalismo por todos os males, inclusive aqueles que, ironicamente, são importados de regimes onde o capitalismo não existe de fato. A denúncia é legítima. O problema é o diagnóstico. E, sem diagnóstico preciso, não há chance de solução.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.