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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Máfia de Estado

A Venezuela está em guerra — e há muito tempo

A Venezuela vive uma guerra híbrida: prolongada, silenciosa e intensa. O Estado se comporta como máfia e o crime, como poder político. (Foto: Miguel Gutiérrez/EFE)

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A Venezuela está em guerra? Fiz essa pergunta, nesta semana, a um professor de ciência política. Ele respondeu que não: guerra, para ele, pressupõe choque entre exércitos regulares ou, no mínimo, o duelo armado entre governo e rebeldes. Respeito a ortodoxia acadêmica, mas ela me parece insuficiente diante da realidade venezuelana.

Como explicar, então, que quase oito milhões de pessoas abandonaram o país na última década, número comparável ao êxodo sírio? Como explicar a economia estilhaçada, a fome crônica e a miséria típica de países em conflito? Se o critério é apenas a troca de tiros entre forças uniformizadas, talvez a definição clássica não abarque mais o que está se passando no país sul-americano.

Insisto há anos: não existe “a” guerra; existem guerras. Modalidades distintas, instrumentos variados, zonas cinzentas que confundem quem prefere a simplicidade do manual.

Para entender a Venezuela, é preciso chamar pelo nome correto: guerra híbrida. Ou a “guerra do vale-tudo”, em que o Estado se mistura ao crime, a inteligência vira partido, a propaganda se torna política pública e as fronteiras morais passam a ser um detalhe dispensável.

O teatro de operações não é uma trincheira; é o sistema inteiro. Soma-se a isso um contexto de conflito de baixa intensidade que se torna quase invisível, pois não há tropas, tanques ou violência visivelmente concentrada.

Em discurso recente, caprichando com pitadas de inglês, Nicolás Maduro falou em paz e acusou Donald Trump de querer iniciar uma guerra. É o velho truque do salafrário que ataca e posa de vítima quando alguém ergue um escudo.

A ofensiva não começou agora, tampouco é improviso: vem de quando Hugo Chávez ainda dava as ordens e bebe da fonte da guerra assimétrica ensinada por Fidel Castro, em que as “armas” principais são a desinformação, o crime organizado, a diplomacia de fachada e o uso politizado da fome.

O chamado Cartel dos Sóis não brotou do nada. Ele é o subproduto de uma estratégia que aproximou militares, serviços de inteligência e redes criminosas para montar uma logística continental de cocaína com dupla finalidade: inundar os Estados Unidos (corroendo a coesão social e a saúde pública) e garantir um duto permanente de dólares para as FARC e para o chavismo. Dólares esses vindos dos viciados norte-americanos. Genial!

Depois veio o Tren de Aragua, braço avançado do crime convertido em ferramenta de projeção externa. No rastro do êxodo, células do grupo cruzaram fronteiras camufladas em meio a gente que fugia da fome e da insegurança. Não se trata de criminalizar migrantes — as maiores vítimas desse projeto revolucionário bolivariano —, mas de registrar o óbvio: Caracas aprendeu a transformar o colapso humanitário em vetor de sua guerra.

Quando o regime facilita documentação, fornece identidades falsas a militantes do Hezbollah e abre espaço para que o Irã opere no Caribe, está agindo em “modo combate”. Não precisa de colunas de tanques cruzando Caracas para que se perceba a arquitetura estratégica: serviços de inteligência, alianças com redes terroristas e crime transnacional compondo o mesmo tabuleiro.

“Mas e a intervenção?”, perguntam. Quando Washington movimenta navios e aviões para a região, Maduro faz beicinho e se vende como pacifista de última hora. Uma parte da audiência internacional aplaude.

Nos Estados Unidos e na Europa, ONGs e “especialistas” — alguns deles muito bem financiados — repetem que é tudo fantasia: o Cartel dos Sóis seria uma invenção, o Tren de Aragua, uma gangue de bairro, e o Estado venezuelano, apenas um espectador aturdido — no máximo negligente ou lateralmente contaminado. O roteiro é conhecido: relativizar o agressor, demonizar quem reage e carimbar de “conspiração” qualquer tentativa de chamar as coisas pelo nome.

Se aceitarmos a definição estreita de guerra, a história recente da Venezuela vira mera crise econômica com “desvios de conduta”. Se a ampliarmos para incluir a dimensão híbrida — a fusão deliberada entre poder estatal, crime organizado, propaganda, sabotagem informacional, captura institucional e operações externas —, a fotografia se torna nítida.

A Venezuela vive uma guerra prolongada, de baixa intensidade, sem o ruído das armas, mas de altíssima intensidade nos resultados. Os números falam. Oito milhões em fuga não são “acidentes demográficos”; são a expressão de uma estratégia que expulsa os indesejáveis e dispersa redes próprias. A hiperinflação e o desabastecimento não são fatalidades; são ferramentas de disciplinamento social.

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E a diplomacia de fachada, escoltada por campanhas de desinformação, serve para anestesiar plateias estrangeiras e comprar tempo enquanto a máquina continua moendo gente — dissidentes políticos presos, torturados e assassinados.

Volto à pergunta inicial: a Venezuela está em guerra? Sim, e há tempos. É uma guerra sem declaração, travada com armas não convencionais, conduzida por um Estado que aprendeu a operar como máfia e por máfias que se comportam como Estado.

É também uma guerra contra os próprios venezuelanos, transformados em massa de manobra e moeda de troca, e contra a região, testada diariamente em suas fronteiras, polícias e democracias.

A resposta que nos cabe não é semântica, é estratégica. Enquanto insistirmos em medir a Venezuela com a régua errada, seguiremos subestimando a ameaça e superestimando o pacifismo cínico que sai da boca do agressor. Identificar a natureza do conflito é o primeiro passo para enfrentá-lo.

O segundo é abandonar a confortável neutralidade que, na prática, favorece quem agride. Guerras híbridas se vencem com clareza moral, inteligência e ação coordenada — justamente o que o chavismo mais teme.

O cerco a Maduro pode levar o regime a expulsá-lo. Ele se transformou em um inconveniente para o conjunto das operações criminosas. Um cenário possível, com os navios de guerra dos Estados Unidos estacionados no Caribe, é o de uma Venezuela sem Maduro — mas não necessariamente sem as máfias que o sustentam.

O resultado prático, para os Estados Unidos, pode ser o fim da ação de guerra deliberada contra a América. Esse, aliás, é o objetivo do presidente Donald Trump. O que virá depois? Só Deus sabe.

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