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“Era um sonho dantesco…” Assim escreveu Castro Alves ao retratar, no século XIX, o horror dos porões abarrotados dos navios negreiros. O Brasil aboliu a escravidão no papel e ergueu memória para se purificar do passado. Mas, no século XXI, substituíram o porão pela cabine pressurizada.
Em vez de porretes, burocracias. Em vez de grilhões, contratos triangulados. Vieram de Havana aos milhares, desembarcando em sucessivas pontes aéreas. Os “aviões negreiros” pousaram com a bênção de Dilma Rousseff, Lula, o PT e o carimbo de um organismo internacional.
O anúncio desta semana do Departamento de Estado dos Estados Unidos, sobre o cancelamento de vistos de ex-funcionários brasileiros e de ex-dirigentes ligados à Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) por sua participação no Mais Médicos, não deveria causar surpresa. Ele apenas dá nome ao que o Brasil fingiu não ver.
O governo americano descreve o arranjo como um esquema de trabalho coercitivo que enriqueceu o regime cubano e vitimou os profissionais. Entre os citados, aparecem ex-funcionários do Ministério da Saúde que operaram a máquina. É um começo de prestação de contas; tardio, mas necessário.
A engenharia financeira do programa está documentada em processos e relatórios. A OPAS funcionou como intermediária: recebia o dinheiro do Brasil, retinha 5% de “taxa administrativa” e repassava a quase totalidade a Cuba. Aos médicos, sobrava cerca de 20% do valor efetivamente pago pelos brasileiros; o regime ficava com 85%. Se preferir eufemismos, chame de “cooperação”. Se preferir dar às coisas os nomes que elas têm, pode dizer escravidão.
Ao longo de seu funcionamento, o Programa Mais Médicos contabilizou, entre idas e vindas, cerca de 18.000 médicos cubanos. Em cinco anos, o próprio governo de Cuba alardeou ter enviado algo como 20 mil médicos ao Brasil.
Não eram “voluntários”; eram servidores de um Estado que, em casa, lhes paga salários de miséria e, no exterior, confisca a renda. Quando críticos apontavam o óbvio, a reação foi moralista: “preconceito, xenofobia”. A retórica serviu de biombo para um negócio bilionário.
O desfecho começou em 14 de novembro de 2018, quando Havana retirou-se do acordo após o presidente eleito Jair Bolsonaro anunciar mudanças contratuais: pagamento direto aos médicos, liberdade para trazer a família e revalidação de diplomas. Diante da perspectiva de “alforria” – sem nenhuma pretensão de metáfora –, o regime preferiu recolher sua tropa branca de jaleco.
O Brasil correu para cobrir o vácuo. E foi nesse interstício que surgiu um fato incômodo: mais de 2,5 mil cubanos decidiram ficar no Brasil, mesmo com a ameaça de represálias e banimento de retorno à ilha. Eles formaram, espalhados em periferias e sertões, um quilombo contemporâneo com a marca da estrela do PT e o brasão da OPAS.
A comparação com Castro Alves não é licença poética gratuita. O poeta apontava o dedo para o “auriverde pendão” manchado pelo comércio de gente. Hoje, a bandeira é outra, mas o Brasil é o mesmo.
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No tabuleiro, a OPAS foi peça central. Não por acaso, ações judiciais nos EUA descrevem a organização como colaboradora financeira do arranjo e punem alguns de seus ex-servidores envolvidos na escravidão.
Há também uma dimensão de responsabilidade orçamentária que precisa ser dita sem rodeios. Os Estados Unidos são, de longe, o maior financiador da OPAS. O Brasil, por sua vez, figura entre os maiores contribuintes.
Em 2018, foi a principal origem de contribuições nacionais à organização, por causa do volume monumental de dinheiro confiscado dos escravos cubanos. Se pagamos tanto, por que exigimos tão pouco? Se financiamos, por que fechamos os olhos?
A decisão dos EUA de cassar vistos é pouca coisa diante do tamanho do dano moral, financeiro e humano causado pelo programa. Mas tem um mérito: quebra o pacto de silêncio. Falta ao Brasil fazer o mesmo, não como revanche ideológica, mas como resgate civilizatório.
O mínimo seria reconhecer as vítimas, abrir as contas, responsabilizar gestores e intermediários e garantir residência, validação de diploma e indenização a quem escolheu a liberdade. Sem isso, continuaremos voando em círculos, com a cabine lotada de falsas virtudes e o porão abarrotado de escravos.
Castro Alves pediu que o “pendão da esperança” não servisse de manto para “a infâmia”. A lição vale para a política externa, para os organismos internacionais e para o nosso sistema de saúde. Que os aviões que cruzam os céus do Brasil não sirvam mais de via para aviões que carreguem escravos. Que a bandeira do Brasil – aproveitando o soluço de patriotismo da esquerda brasileira – não sirva mais para adornar a infâmia.
Conteúdo editado por: Aline Menezes





