Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Atos extremos

De Cabul a Washington: o trauma que alimenta a violência

Agentes da lei observam o local onde dois membros da Guarda Nacional da Virgínia Ocidental foram baleados em Washington, DC, EUA, em 26 de novembro de 2025. (Foto: Will Oliver/EFE/EPA)

Ouça este conteúdo

O afegão Rahmanullah Lakanwal serviu no exército de seu país e lutou lado a lado com os americanos na contenção dos radicais do Taleban. Quando os radicais islâmicos retomaram Cabul em 2021, Lakanwal entrou no grupo dos que tinham motivos reais para temer represálias. Por essa razão, ele fez parte da lista daqueles que foram retirados às pressas do país. Nos Estados Unidos, ele recebeu abrigo e a chance de reconstruir a sua vida e a de sua família, bem longe dos horrores de sua terra natal.

Nesta semana, Lakanwal resolveu dar outro rumo à sua vida. Ele abriu fogo contra dois membros da Guarda Nacional que patrulhavam uma rua de Washington, D.C., nos arredores da Casa Branca. Foi baleado pela polícia e segue hospitalizado em estado grave (assim como seus alvos).

Pouco se sabe sobre suas motivações. Mas vou fazer um exercício aqui: ainda que talvez não se aplique a ele no futuro, a atitude de Lakanwal serve de alerta para uma realidade negligenciada: o risco crescente representado por indivíduos que, embora não tenham vínculos formais com grupos extremistas, carregam uma carga de frustração e ressentimento capaz de evoluir para algo muito perigoso. Esse comportamento não surge do nada. Ele aparece em pequenos sinais que, isolados, parecem irrelevantes.

Recentemente, por duas ocasiões, embarquei em viagens de Uber nas quais os motoristas eram afegãos. Ambos tinham uma mentalidade parecida: em resumo, os Estados Unidos são responsáveis por todas as tragédias de seu país. Uma lista que remonta aos anos 1970, passa pela queda do Afeganistão nas mãos do Taleban, a guerra, o retorno do Taleban, a instabilidade política, a corrupção das elites locais e até sua própria dificuldade de prosperar no país que os acolheu — no caso, a América.

O discurso parecia espontâneo, mas é sintoma. Muitos imigrantes vindos de zonas de conflito chegam ao Ocidente acreditando que sua colaboração passada com os americanos deveria lhes garantir uma vida excepcional. Quando descobrem que o recomeço não inclui atalhos, tampouco privilégios automáticos, o choque é brutal. A vida que recebem é melhor do que a que tinham, mas não é a vida que imaginavam. E, quando expectativas infladas batem na realidade, o resultado costuma ser frustração.

A frustração isolada não produz terrorismo ou violência, mas é um processo perigoso. Quando ela não é resolvida, evolui para o ressentimento. Esse sentimento, por sua vez, é uma erosão lenta. A pessoa passa a reinterpretar a própria história. O fracasso pessoal deixa de ser responsabilidade individual e passa a ser produto de uma injustiça externa. E, quando essa lente se instala, tudo passa a confirmar a sensação de que alguém — ou, no caso, o país que o acolheu — é o culpado por sua condição.

Esse ciclo não é ideológico. É psicológico. E, se não tratado, vira doença. A literatura sobre radicalização mostra que muitos casos não começam na religião, na política ou no fanatismo, mas no desgaste emocional acumulado que, com o tempo, ganha uma narrativa “épica” para justificar o que a pessoa não consegue explicar a si mesma.

Ainda não sabemos se esse é o caso de Lakanwal. Ele está hospitalizado, não deu depoimentos públicos e não há evidências de ligação com grupos extremistas. Mas o perfil de um homem que perdeu status, deslocado geograficamente, sobrecarregado pela responsabilidade de sustentar uma família de cinco filhos e incapaz de se inserir plenamente no novo país é compatível com o tipo de vulnerabilidade que o Ocidente insiste em subestimar.

As agências de segurança procuram terroristas clássicos: operadores, financiadores, conspiradores, gente conectada a organizações formais. Mas as ameaças são muito mais dinâmicas.

VEJA TAMBÉM:

O perigo hoje também vem do indivíduo que não consegue se adaptar, não prospera, se sente injustiçado e encontra em atos extremos a única forma de transformar frustração em redenção

Importar pessoas significa importar suas histórias, traumas, códigos culturais e feridas. Também significa importar as expectativas que elas carregam. Quando essas expectativas se chocam com a realidade, a tensão resultante não é apenas pessoal: pode se transformar em violência.

Os Estados Unidos e os países europeus sempre foram bons destinos para esse tipo de indivíduo, que chegava em número reduzido e tinha a chance de ser assimilado pela sociedade e pelo mercado locais. Mas, nos últimos anos, a imigração ultrapassou o limiar da sustentabilidade e mesmo os Estados Unidos já não são mais capazes de absorver e integrar os volumes de imigrantes e refugiados que chegaram.

Lakanwal, assim como milhares de afegãos que chegaram aos Estados Unidos depois da queda de Cabul, recebeu autorização de trabalho, auxílio-moradia, acesso a escolas de inglês e auxílio em cash para recomeçar a vida. Mas não é fácil. Lakanwal sobreviveu ao Taleban, mas não ao peso de uma vida diferente de tudo que ele conhecia. Talvez por isso ele não tenha reconhecido que, apesar das dificuldades, havia trocado o inferno afegão por uma nova chance na América.

O afegão Lakanwal colocou tudo a perder. E a explicação pode ser muito simples e dura. Ele saiu do Afeganistão. Ele saiu de um ambiente de guerra e violência. Mas o Afeganistão — e a guerra — não ficaram para trás.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.