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Leonardo Coutinho

Leonardo Coutinho

Brasil, América Latina, mundo (não necessariamente nesta ordem)

Democracia relativa

Em Moscou, Lula celebra as autocracias

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante chegada a Moscou. Aeroporto Internacional de Moscou – Vnukovo. (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem uma relação bem peculiar com a democracia. Ao mesmo tempo em que se apresenta como salvador, suas atitudes frequentemente refletem proximidade quase umbilical com autocracias e regimes marcados por corrupção e desrespeito às liberdades fundamentais. 

Sua presença no desfile militar de 9 de maio em Moscou é um exemplo notório dessa contradição. Ao se juntar a líderes autocráticos na Praça Vermelha, Lula ignora, ou talvez conscientemente negligencia, os fundamentos democráticos que tanto alardeia proteger e que convenceram muitos brasileiros a entregar-lhe um terceiro mandato.

Dos líderes presentes, pelo menos oito são governantes notoriamente autoritários. Destacam-se Aleksandr Lukashenko, de Belarus, conhecido por esmagar dissidentes e opositores sem cerimônia; Nicolás Maduro, da Venezuela, cujo governo mergulhou seu país numa crise humanitária sem precedentes, na maior onda migratória do hemisfério e em centenas de presos políticos; e Miguel Díaz-Canel, de Cuba, que mantém intacto o sistema de repressão cubano. Lula e seus amigos ditadores são as estrelas melhores na constelação dos autocratas.

O brilho máximo caberá ao anfitrião, Vladimir Putin – que, tal como um czar pós-soviético, reina na Rússia por meio de eleições fajutas e repressão descomunal – e ao pai de todos, Xi Jinping, que comanda o regime chinês e desde Pequim trabalha para redefinir e erodir a confiança na democracia, transformando-a em um conceito tão fluído, que pode ser customizado conforme a vontade de quem o usa. 

Juntos, eles ilustram um bloco de governantes que não têm qualquer apreço real pelos valores democráticos. 

Ao lado deles, agora, o presidente brasileiro celebra o legado de uma ditadura soviética revestida de retórica antifascista. Sim, antifascista

Segunda Guerra Mundial

O evento em Moscou é carregado de simbolismos e leituras enviesadas. De Stalin a Putin, as celebrações da vitória soviética na Segunda Guerra Mundial buscam a Rússia como a legítima herdeira do antifascismo histórico. 

Essa narrativa simplificada esconde as múltiplas faces da repressão soviética, o expansionismo militar e o legado autoritário que persiste até os dias atuais. Mas mais do que isso, tenta ocultar o papel original da URSS na guerra.

Moscou tem ditado desde o fim da Segunda Guerra Mundial, há 80 anos, que foram eles que venceram. Sem o sangue russo, os aliados jamais teriam batido Hitler, ou pelo menos teriam levado muito mais tempo – ao custo de muitas mortes – para aniquilar com o inimigo nazista. 

Os stalinistas do passado e do presente também se esforçam para distorcer alguns episódios desabonadores da história soviética na Segunda Guerra.

Em 23 de agosto de 1939, a URSS assinou com a Alemanha Nazista um tratado de não-agressão que incluía a divisão do Leste Europeu em esferas de influência de ambos os regimes totalitários. 

O pacto Molotov-Ribbentrop (em referência aos sobrenomes dos chanceleres da URSS e Alemanha) foi o catalisador da eclosão do conflito. Ao garantir a Hitler que o leste europeu estava “livre” de oposição soviética, o acordo removeu o principal obstáculo que detinha o Führer de invadir a Polônia. Algo que aconteceu nove dias depois da assinatura do pacto.

Além do pacto de não-agressão, Stalin honrou com outra promessa e também invadiu a Polônia pelo Leste, levando à divisão do país com os nazistas e posteriormente a uma série de outras invasões tacitamente promovidas e combinadas pelos dois regimes em frentes distintas.

A aliança com Stalin permitiu à Alemanha concentrar seus esforços militares no front ocidental nos primeiros anos de guerra, assegurando que não haveria uma frente leste ativa. Hitler pôde esmagar a Polônia e, em seguida, voltar-se contra a Dinamarca, Noruega, o Benelux e a França sem temer um ataque soviético às suas costas. 

A ausência de uma guerra de duas frentes – que fora o pesadelo alemão na Primeira Guerra Mundial – facilitou as vitórias relâmpago do Eixo no início do conflito. Esse foi um presente de ouro que os comunistas da URSS deram a Hitler.

A ajuda de Stalin e sua União Soviética não parou na cooperação militar. Os comunistas se transformaram em um provedor vital de petróleo, minérios, cereais e outros recursos críticos para a sobrevivência dos alemães de sua máquina de guerra, que estava sob bloqueio marítimo inglês. 

Essa aliança Hitler-Stalin deu um nó na cabeça de gente, como Benito Mussolini, que usava a retórica anticomunista que por duas décadas alimentava a polarização. Os arqui-inimigos se transformaram em aliados.

Embaralhou também os aliados liderados, naquele momento, por Reino Unido e França. A aposta de que os rivais históricos entrariam em conflito havia se esfacelado no ar. Stalin não só passou a prover a salvaguarda de proteção oriental, como transformou a URSS em uma fonte de recursos vitais para a Alemanha.

Assumir que comunistas e nazistas caminharam de mãos dadas nos primeiros anos da Segunda Guerra e que, se não fosse a União Soviética, Hitler talvez não tivesse ido tão longe não envergonha os saudosos da URSS e comunistas remanescentes, entre os quais estão Lula, o PT e quase toda a esquerda.

Eles ignoram a realidade ou simplesmente não a conhecem, pois ruminam a propaganda stalinista de que os soviéticos são os grandes heróis

Stalin só entrou na guerra para salvar o próprio pescoço. Pouco antes de completar dois anos de aliança, Hitler roeu a corda e invadiu a URSS. O líder nazista havia entendido que não precisava de um sócio que um dia poderia se voltar contra ele. 

Caso Hitler não tivesse atacado a URSS em 1941, é provável que Stalin tivesse mantido o seu pacto por anos a fio, colhendo seus frutos territoriais e industriais e se preparando para intervir apenas quando a Alemanha e os Aliados ocidentais estivessem exauridos. Pois Stalin via a guerra entre as potências capitalistas como algo que poderia, em última instância, beneficiar a expansão do comunismo, que marcharia sobre os escombros deixados pela guerra na Europa. 

É possível que, além de sua cobiça por matérias-primas, Hitler tenha entendido que os soviéticos colocavam combustível na guerra com o objetivo de enfraquecer ambos os lados, para depois dar o bote.

É inegável que, depois que a URSS entrou na guerra contra a sua vontade, o jogo ficou difícil para os nazistas, o combate em duas frentes diluiu os esforços das tropas de Hitler. 

Apesar de terem esmagado os comunistas nas primeiras fases do conflito com a URSS, os nazistas se viram engolfados em uma combinação de invernos congelantes e um território tão vasto que impediu o avanço de forma eficiente. Stalin foi salvo pelo clima e pela geografia.

Não se trata de ser leviano e ignorar que, depois que mudou de lado, a URSS teve um papel fundamental na guerra e que seus milhões de soldados mortos não deram a sua contribuição para a vitória contra o nazismo. 

Mas a comemoração da qual o presidente Lula e seus amigos autocratas tomam parte não é genuinamente de heróis. Além de terem ajudado no início da guerra, no seu prolongamento com o objetivo espúrio de enfraquecer a Europa para dominá-la, os comunistas lutaram para salvar o próprio regime. 

Regimes estes que – depois da vitória que contou com a ajuda de todos, inclusive da Força Expedicionária Brasileira – transformaram-se em uma máquina de expansão territorial por meio da força. Milhões de pessoas foram presas, deportadas para outras áreas dentro do território sob dominação soviética. Entre elas, são estimados números superiores a um milhão de mortes e execuções nos gulags.

Paradoxo de Lula

O paradoxo de Lula em relação à democracia não é recente. Em 2003, quando assumiu pela primeira vez a presidência, o PT implantou uma infraestrutura de suborno e compra de votos no Congresso, o Mensalão.

O esquema visava subverter o equilíbrio democrático de forças, transformando o Parlamento numa extensão dócil de seu partido. O desmonte desse mecanismo criminoso revelou uma abordagem utilitária e profundamente cínica da democracia, valorizando-a apenas enquanto útil para seus interesses políticos.

Em seu segundo mandato, Lula lançou as bases do Petrolão, que seria revelado em detalhes pela Operação Lava Jato. Com a desculpa de financiar grandes obras no exterior e promover o desenvolvimento regional, bilhões foram desviados para alimentar campanhas políticas e perpetuar aliados ideológicos no poder.

Dessa forma, líderes autoritários como Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, ou Daniel Ortega, na Nicarágua, beneficiaram-se diretamente dessa rede de corrupção internacional. A democracia, aqui, era mais uma vez sacrificada em prol da perpetuação ideológica.

Mesmo quando esteve longe do governo, o legado desse modelo de corrupção sistemática continuou operando na América Latina e África, minando instituições democráticas e contribuindo diretamente para sustentar autocracias alinhadas ao PT. 

Com essa bagagem, Lula retornou ao Palácio do Planalto em 2023, impulsionado pela narrativa de que era o único capaz de salvar uma democracia supostamente ameaçada no Brasil.

Curiosamente, em suas promessas, Lula, que jura defender a democracia, quase sempre falha quando a democracia ou a falta dela estão relacionadas com matizes partidárias, ou ideológicas de sua preferência. Sua defesa democrática era seletiva desde o início.

Ao alinhar-se, agora, com autocratas em Moscou, Lula expõe o vazio de sua retórica democrática. Está claro que sua defesa da democracia é circunstancial, condicionada ao alinhamento político e ideológico. 

Celebrar o triunfo soviético ao lado de governantes reconhecidamente autoritários, usando uma narrativa histórica distorcida que legitima governos opressores, é uma afronta não apenas à memória histórica, mas também aos princípios democráticos que ele supostamente prometeu defender.

O presidente brasileiro escolheu, assim, um caminho que contradiz frontalmente seu discurso. A democracia que Lula defende parece existir apenas nos discursos de campanha e nas conveniências momentâneas. 

Na prática, sua proximidade com ditadores e sua participação ativa num evento que celebra uma versão parcial e interessada da história mundial são a prova de que a defesa democrática, para ele, sempre dependeu mais de circunstância do que de princípios. 

Em Moscou, Lula coloca-se simbolicamente no lado errado da história, um lugar no qual parece, infelizmente, cada vez mais à vontade.

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Conteúdo editado por: Aline Menezes

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