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Precisamos acabar com o controle de constitucionalidade concentrado

O STF, lamentavelmente, tem usurpado a competência do Legislativo, desequilibrando a atuação dos poderes. A melhor maneira de corrigir esse desvio é extinguir o controle de constitucionalidade concentrado (Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF)

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Ao acompanhar o noticiário, percebendo o protagonismo do Supremo Tribunal Federal, tem-se a impressão de que a Corte não somente julga, mas também legisla e, em alguns casos, parece administrar. O cidadão, perplexo, questiona quais são os limites de atuação do STF.

Afinal de contas, o que compete ao Supremo Tribunal Federal? A guarda precípua da Constituição. É o que consta no art. 102 da própria Carta. Isso significa que a função essencial do STF é proteger e aplicar as regras constitucionais. Aqui surge um problema. Nossa Constituição é muito extensa, cobrindo uma infinidade de assuntos – dos direitos fundamentais, estabelecidos no art. 5º, às regras do Sistema Tributário Nacional, previstas nos arts. 145 e seguintes. A tal ponto é detalhista que chega a determinar a natureza federal do Colégio Pedro II, localizado no Rio de Janeiro...

Por que essa amplitude é problemática? Porque permite a concentração de muito poder na Corte. Como a Constituição trata de tudo, todos os processos podem terminar no STF. O art. 102, no inciso I, torna o quadro ainda pior, pois prevê diversas hipóteses de competência originária, ou seja, aqueles casos em que as ações são propostas diretamente no Supremo. É aqui que eu queria chegar.

Dentre as demandas ajuizadas diretamente no Supremo, destaco a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), a Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). São as chamadas ações de controle concentrado. Por meio das duas primeiras, o STF pode analisar abstratamente a constitucionalidade das leis. Chama-se de controle concentrado porque a análise é realizada diretamente pelo Supremo, sem passar por outros tribunais. Por que se diz abstrato? Porque a constitucionalidade é averiguada à luz do texto legal, não em um processo específico.

O STF, lamentavelmente, tem usurpado a competência do Legislativo, desequilibrando a atuação dos poderes. A melhor maneira de corrigir esse desvio é extinguir o controle de constitucionalidade concentrado

Imaginemos que o Congresso aprove uma lei garantindo ao filho primogênito a totalidade da herança. O Supremo pode declarar a inconstitucionalidade abstratamente, por conta da violação da igualdade, sem que qualquer prejudicado tenha de promover uma ação. Ou seja, não será necessário que um filho prejudicado discuta o assunto em um inventário para que a regra seja considerada inconstitucional. A Corte Suprema pode fazê-lo diretamente.

Quem pode propor as ações de controle abstrato? As pessoas e entidades indicadas no art. 103 da Constituição, dentre as quais os partidos políticos, as confederações sindicais e as entidades de classe de âmbito nacional. É aqui que mora o perigo! Qualquer partido descontente com a aprovação de uma lei pode impugná-la no Supremo. Derrotado na batalha política do Congresso, recorre à Corte. Pior que isso: confederações sindicais e órgãos de classe, como a OAB e o Conselho Federal de Medicina, podem buscar a derrubada de leis a fim de que prevaleçam interesses corporativos. A vontade da maioria, representada em votação expressiva do Legislativo, pode ser contrariada em uma ação de controle concentrado oportunista.

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o problema se torna ainda mais agudo. Por meio dessa ação, o STF pode decretar a inconstitucionalidade de atos do poder público praticados nas esferas federal, estadual ou municipal. O mecanismo tem sido frequentemente utilizado para judicializar temas polêmicos, como a atuação da polícia nas favelas, a descriminalização do aborto e o impeachment de ministros do Supremo. Ocorre que esses assuntos deveriam ser discutidos e decididos no Congresso, não na última instância do Judiciário. A legitimidade para propor uma ADPF recai sobre as mesmas pessoas e entidades que podem propor ADIns e ADCs. Amplíssima, portanto!

Ainda no controle concentrado, admite-se a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. Os legitimados são os mesmos da ADIn, mas o objeto é diferente: pretende-se garantir a observância de regras constitucionais que não estejam sendo aplicadas em razão da falta de leis regulamentadoras. Ou seja, a Constituição prevê um direito, mas ele depende de uma lei que não foi promulgada. Nesses casos, o STF dá concretude ao preceito constitucional apesar da inexistência de lei. O perigo à separação de poderes, com a usurpação da competência do Legislativo, é bastante evidente.

Esse panorama demonstra a amplíssima extensão do controle de constitucionalidade concentrado, deixando claro os riscos de abuso e de comprometimento da separação de poderes, sobretudo em uma Corte com perfil ativista. Qual é o remédio? A minha proposta é radical: a extinção do controle concentrado ou, quando menos, a restrição da legitimidade para a propositura de ações à Procuradoria-Geral da República. Neste caso, o ajuizamento dependeria de manifestação do Conselho Nacional do Ministério Público.

Não haveria o risco, no sistema proposto, de que prevalecessem leis francamente inconstitucionais? Não, pois continuaria a existir o controle de constitucionalidade difuso, realizado pelos juízes de 1ª instância, pelos tribunais e pelo Supremo nos casos concretos. A diferença fundamental entre o controle concentrado e o difuso é que este vale apenas para as partes, ao passo que aquele atinge todos os cidadãos.

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Lembra da lei que imaginei sobre a restrição da herança aos primogênitos? A inconstitucionalidade, se adotada a minha proposta, seria declarada no caso concreto, a pedido do interessado. O filho preterido ingressaria no inventário requerendo o seu quinhão, sob o argumento de que a lei da primogenitura viola o direito de igualdade, garantido na Constituição. O juiz do caso concreto reconhece a inconstitucionalidade e divide a herança. O caso pode chegar ao STF, após passar pelo juízo de 1ª instância e pelo tribunal, por meio da interposição de recurso extraordinário. Se for reconhecida a inconstitucionalidade, o Senado pode, na forma do art. 52, inc. X, suspender a lei.

A exclusividade do sistema concreto e difuso não é invenção minha. Nos Estados Unidos não há controle concentrado, apenas difuso. No Brasil, temos essa jabuticaba, consistente na adoção dos dois modelos. Ocorre que essa convivência se tornou disfuncional. O STF, lamentavelmente, tem usurpado a competência do Legislativo, desequilibrando a atuação dos poderes. A melhor maneira de corrigir esse desvio é extinguir o controle de constitucionalidade concentrado, ferramenta criada pelo jurista austríaco Hans Kelsen em 1920 para evitar o arbítrio, mas que tem se prestado, no Brasil, ao mais desenfreado ativismo.

Não há dúvida de que mesmo no regime proposto pode haver abusos. Tanto isso é verdade que a inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Legal da Internet foi decretada no âmbito de um recurso extraordinário. Todavia, é igualmente certo que diminuiria a partidarização, a prevalência de interesses corporativos e a concentração de poderes no Supremo. Que a sociedade brasileira possa se unir em torno dessa ideia!

Ricardo Alexandre da Silva, advogado, mestre e doutor em Processo Civil pela UFPR, é membro e co-fundador da Lexum.

Nota: A Lexum não adota posições específicas sobre questões jurídicas ou de políticas públicas. Qualquer opinião expressa é de responsabilidade exclusiva do autor. Estamos abertos a receber respostas e debates sobre as opiniões aqui apresentadas.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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