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Nenhuma democracia no mundo sobrevive sem freios e contrapesos. Quando o Poder Judiciário se agiganta, não importa quão bem-intencionado seja, o resultado é uma assimetria que desestimula o Legislativo a legislar e encoraja o Executivo a governar pela via da judicialização.
A hipertrofia do Judiciário paralisa os outros poderes. Temendo a cassação de atos por liminar monocrática, deputados e senadores passam a agir de forma defensiva. Governadores e prefeitos hesitam em cortar gastos porque sabem que um juiz de primeira instância pode determinar contratações “na marra”. O Congresso também evita votar temas controversos (como aborto, drogas, porte de armas) porque sabe que o STF decidirá de qualquer jeito.
Isso acaba com o princípio da separação de Poderes e cria um ambiente em que a lei escrita importa menos que a leitura momentânea que os tribunais fazem dela. A previsibilidade, essencial ao Direito, cede espaço ao voluntarismo.
Essa hipertrofia afeta os investimentos e o ambiente de negócios; afeta a liberdade de expressão e as garantias individuais; e afeta a confiança social na imparcialidade das instituições. Quando ninguém sabe qual será o entendimento jurídico de amanhã, hoje todos passam a agir com medo – ou oportunismo.
A retórica que sustenta a hipertrofia do Judiciário é sempre sedutora: trata-se de “proteger a democracia”, “defender minorias”, “garantir direitos humanos”, “impedir abusos”. A questão não é o mérito dessas bandeiras – evidentemente, todas legítimas –, mas sim o instrumento utilizado.
Quando um tribunal se autoconcede o papel de defensor da democracia, ele se coloca acima dela. Isso abre espaço para arbitrariedades das mais diversas, porque qualquer decisão pode ser justificada como necessária para salvar o Estado de Direito.
O paradoxo é cristalino: ao combater supostas ameaças autoritárias, o Judiciário age de forma autoritária. O precedente é assustador: o inquérito das fake news, aberto de ofício em 2019, sem denúncia formal nem sorteio de relator, e até hoje inconcluso.
Instituições devem ser julgadas pelos precedentes que criam, não pelo aplauso imediato que recebem. Mas, nos últimos anos, grande parte da mídia, da academia e da militância de esquerda celebrou o ativismo judicial, porque ele serviu à sua agenda.
Trata-se, contudo, de um aplauso muito perigoso: sem freios, o mesmo tribunal que hoje alavanca causas progressistas e persegue a direita pode, amanhã, abandonar essas bandeiras e passar a perseguir a esquerda, sem a menor cerimônia.
Além disso, o Legislativo e o Executivo respondem às urnas. O Judiciário, não. Um parlamentar pode ser cassado pelo voto a cada quatro ou oito anos. Um presidente, idem, ou pode sofrer impeachment. Já um ministro do STF só sai por impeachment (o que é praticamente impossível) ou pela aposentadoria.
Se nada mudar, caminharemos a passos largos para um governo de juízes não eleitos – e, na prática, o voto não servirá para mais nada
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Essa independência em relação às urnas não é um defeito em si, mas uma proteção, pois garante autonomia. Mas ela só é positiva quando os tribunais se limitam a julgar; torna-se extremamente perigosa quando juízes se arvoram a missão de tomar decisões sobre temas centrais da vida coletiva.
Hoje o STF decide sobre aborto, demarcação de terras indígenas, política de drogas, cotas, casamento homoafetivo, ensino domiciliar, tributação de templos e até políticas de combate a pandemias.
No Brasil, essa hipertrofia é fato consumado: ela gera contradições, decisões imprevisíveis, viradas jurisprudenciais abruptas e interpretações casuísticas. A lei deixa de ser um parâmetro sólido e se torna um texto plástico, moldado ao sabor das circunstâncias políticas.
Quanto mais o Judiciário legisla, menos o voto popular pesa. A democracia representativa se esvazia. Não se trata apenas de volume, mas de natureza: juízes substituem legisladores, definem políticas públicas, impõem gastos milionários, interpretam a Constituição segundo convicções morais pessoais, dão a decisões individuais força de lei e produzem sentenças com claro objetivo performático.
Rotineiramente, juízes de primeira instância suspendem atos de governadores, determinam contratações, bloqueiam verbas de estados e municípios, afastam prefeitos eleitos. Substituem a escolha popular democrática pela legitimidade técnica ou moral do magistrado. Ou seja, hoje o Judiciário legisla, governa e pune sem os freios da accountability democrática. Tornou-se protagonista da vida pública, abandonando o papel de árbitro imparcial que lhe cabia.
Infelizmente, a cada dia o Judiciário se politiza mais. Ministros passam a ser rotulados como lulistas ou bolsonaristas. Suas decisões passam a ser vistas como vitórias ou derrotas de campos ideológicos. A toga perde a neutralidade, e a confiança institucional desaba.
O preço é alto: insegurança jurídica, paralisia política, personalização da autoridade e erosão da legitimidade democrática. Se nada mudar, caminharemos a passos largos para um governo de juízes não eleitos – e, na prática, o voto não servirá para mais nada.
Outro fenômeno preocupante é a transformação de ministros do STF em personagens midiáticos. A política passa a girar em torno de decisões monocráticas, muitas vezes pouco fundamentadas, tardias ou contraditórias. A exposição excessiva incentiva sentenças influenciadas por vaidade ou por pressões de grupos de interesse. Mas uma democracia saudável não pode depender da personalidade de onze pessoas.
Quando o poder que deveria ser o limite vira a vanguarda, a balança institucional se destrói. A lei perde previsibilidade, o voto perde relevância, a sociedade perde confiança. A solução não é demonizar o Judiciário, evidentemente, mas devolvê-lo ao seu lugar: de árbitro, não de protagonista; de intérprete, não de legislador; de guardião, não de tutor da democracia.





