
Ouça este conteúdo
As duas Brancas de Neve se encontraram na floresta e...
...travaram o seguinte diálogo:
_ Deus do céu! Quem é você? Você se parece comigo, mas… Tem alguma coisa errada aí!
_ Eu sou você, só que na versão 2.0. Sou a Branca de Neve dos novos tempos! Empoderada, evoluída, descolonizada, desconstruída e socialmente consciente.
_ Mas onde está o vestido azul e amarelo? E o laço impecável no cabelo?
_ Ah, querida, aquele figurino só servia para reforçar padrões opressores. Agora eu me visto de forma neutra e funcional.
_ Mas você está tão… sem graça! E seu cabelo está todo bagunçado, parece que você saiu de uma assembleia sindical e se perdeu na floresta!
_ Sem graça? Não preciso de cabelo hidratado nem de roupas bonitas para me destacar. Meu negócio é militância e justiça social. Mas você deve ser a... minha versão obsoleta, né? Coitada.
_ Obsoleta? Eu sou a Branca de Neve original, vivo com meus sete anõezinhos adoráveis, canto com os passarinhos... É uma vida tão simples e feliz! E os anões são tão fofinhos! Cada um com seu jeitinho: o Dunga, o Soneca, o Zangado... Eles ainda são seus amigos?
_ Anões? Ai, que terminologia problemática! Os anões do seu filme pertencem ao passado, querida. Eles foram cancelados por reforçar estereótipos capacitistas. Agora eu lidero um coletivo de companheiros mágicos e diversos. Tem um companheiro não-binário, um vegano militante, um influencer especializado em cristais... Porque representatividade é tudo. E eles não trabalham mais na mina, isso era exploração da classe trabalhadora.
_ Mas o que eles fazem?
_ Eles são meus aliados na luta anticapitalista. Escrevem teses de mestrado sobre opressão sistêmica e têm um canal de podcast sobre privilégio branco. Branca, você já parou para pensar no castelo de privilégios da sua branquitude?
_ Castelo? Eu moro em uma casinha tão simples... O que mais vocês fazem?
_ Organizamos oficinas de autoconsciência interseccional, boicotamos maçãs não-orgânicas e defendemos políticas de inclusão e equidade. Nosso objetivo é transformar o reino em uma cooperativa autossustentável. Estamos liderando uma revolução contra o patriarcado florestal, nossa arma é um PowerPoint sobre sororidade e veganismo.
_ O Dengoso fez biscoitinhos de mel, você está servida?
_ Vai me oferecer opressão calórica agora? Você é mesmo um caso perdido! Biscoito é puro açúcar capitalista feito para nos escravizar! No meu filme, a gente come barras de proteína de grilo enquanto debate desigualdade. Mas você ainda deve passar seu tempo varrendo pra macho tóxico, né?
_ Eu gosto de arrumar a casinha dos anões...
_ Gostar do trabalho doméstico é o ápice do machismo internalizado! No meu filme eu comando assembleias e desconstruo privilégios. Vassoura? Só se for pra queimar em protesto!
_ Os esquilinhos me ajudam com a casa, sabe? Eles são tão lindos!
_ Você escraviza animais?! Isso é especismo!
_ Mas você ainda canta com os passarinhos?
_ Só se for para conscientizá-los sobre preservação ambiental e os perigos do aquecimento global. Cantar sem viés ecológico e educativo é escapismo.
A Rainha não é mais má, ela foi ressignificada para se alinhar à narrativa de sororidade. Eu a convenci a passar por um processo de autoaceitação e desconstrução da sua vilania tóxica
_ E onde está o príncipe? Ele me acordou com um beijo, foi tão romântico...
_ Príncipe? Um cara te beijar desacordada? Isso é assédio, querida. Consentimento zero. Príncipes são tóxicos, meu foco é minha jornada pessoal. No meu filme aquele representante hetero cisgênero do patriarcado colonialista é apenas coadjuvante. Eu não preciso ser beijada por nenhum macho escroto, prefiro acordar sozinha gritando: "Sou independente e dona de mim!”.
_ Mas eu gosto da minha vida simples, e o espelho da Rainha Má me acha bonita. Não preciso militar pra ser feliz.
_ O espelho te acha bonita? Kkkkk isso é objetificação pura! O espelho foi cancelado por gordofobia e etarismo. Era um símbolo do eurocentrismo tóxico e da inivisibilidade dos corpos feios. Eu quero ser valorizada pela minha força, não por padrões de beleza retrógrados e excludentes. Estamos em 2025, a beleza é irrelevante.
_ Mas por que a Rainha Má teria inveja de um Branca de Neve que sequer é bonita?
_ A Rainha não é mais má, ela foi ressignificada para se alinhar à narrativa de sororidade. Agora ela é uma coach de autoestima. Eu a convenci a passar por um processo de autoaceitação e desconstrução da sua vilania tóxica.
_ Pelo menos a maçã continua igual, certo?
_ Claro que não! Comer maçã reforça a cultura agrícola patriarcal e o consumo inconsciente de alimentos. Agora só aceito lanches certificados por um coletivo vegano sustentável, com carimbo de alguma ONG ambiental financiada pelo George Soros. Além disso, aquela maçã envenenada era super-problemática. Normalizava a violência contra mulheres.
_ Gente, isso é um conto de fadas ou um panfleto? Nada de maçã? Nada de romance? Nada de aventura? Qual é a moral da história?
_ A moral é lacrar, óbvio. Cada cena tem uma hashtag: #EmpoderamentoFeminino, #DiversidadeMágica, #FimDoPatriarcadoHeteronormativo, #SemAnistiaParaOsPríncipesTóxicos. Meu filme é uma aula de lacração, muito mais relevante que o seu.
_ Relevante? Meu filme encheu cinemas por décadas! Já o seu... Bem, ouvi dizer que as salas estão mais vazias que o castelo da Rainha Má depois que ela caiu do penhasco. Mais vazias que a manifestação do Boulos na Avenida Paulista!
_ Isso só acontece porque o patriarcado fascista de ultradireita está boicotando meu filme!
_ Sabe de uma coisa, Branca de Neve 2.0? Acho que prefiro a minha versão. Agora, se me der licença, tenho um príncipe encantado me esperando para um baile no castelo.
_ Baile? Credo! Que coisa antiquada!
_ Pois é. Mas eu adoro! Até nunca mais, versão sem graça!
_ Machista internalizada! Fascista! Bela, recatada e do lar!
_ Chata sem encanto! Lacradora mal amada!
_ Mal amada? Isso é micro agressão! Vou denunciar você no tribunal da floresta e exigir que bloqueiem sua conta bancária e seus perfis nas redes sociais, em defesa da democracia! Liberdade de expressão não é liberdade de agressão!
Indignada, a Branca de Neve 2.0 vai embora com ar de superioridade moral, resmungando algo inaudível sobre a persistência das estruturas opressoras no inconsciente feminino. Os anões acham graça, e os passarinhos, que estavam calados, voltam a cantar. Nesse momento, a Rainha Má, que observava a conversa de longe, pensou:
_ Ah, nem vou precisar envenenar a nova Branca de Neve. A lacração woke já fez o serviço.
VEJA TAMBÉM:




