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Contra o colonialismo do carbono
| Foto: Reprodução

Foi no insuspeito Le Monde, que não é exatamente um jornal de direita, que li uma reportagem muito esclarecedora sobre como funciona na prática o mercado de créditos de carbono: “Libéria prestes a conceder 10% da sua superfície a uma empresa dos Emirados Árabes Unidos para produzir créditos de carbono”.

O subtítulo usa uma expressão que eu nunca vi em nenhum jornal brasileiro, nas matérias sobre o tema: ele explica que a tal empresa está comprando o “direito de poluir”.

No fim das contas, é disso que se trata: os Emirados Árabes vão pagar para impedir qualquer uso de 1 milhão de hectares de floresta da Libéria, um dos países mais pobres do mundo, como contrapartida para continuar explorando combustíveis fósseis e poluindo o planeta – com a consciência limpinha.

Resumindo: o país miserável da África perderá sua soberania sobre 10% do seu território, incluindo a gestão das riquezas potencialmente ali presentes; já o país rico e montado em petróleo continuará poluindo como se não houvesse amanhã – mas tudo bem, porque ele estará cumprindo sua meta climática, nos termos do Acordo de Paris.

A Libéria é tão pobre que metade da população vive da coleta de produtos da floresta para subsistência e para venda, segundo este artigo publicado no site do igualmente insuspeito Banco Mundial: “Todos os dias, essas famílias gastam mais de três horas coletando produtos florestais para subsistência e para venda, ganhando 35% de sua renda”. O que será de muitas dessas famílias?

É evidente que a poluição do planeta deve ser controlada, mas é este o caminho? Os pobres é que vão pagar a conta? Não seria esta uma nova forma de colonialismo, o colonialismo do carbono?

Não seria esta uma nova forma de colonialismo – o colonialismo do carbono, aliás tema do livro “Carbon Colonialism: How Rich Countries Export Climate Breakdown” [“Colonialismo de carbono: como os países ricos exportam colapso climático“], de Laurie Parsons, que será lançado em novembro - e também desta reportagem da Rede ABC da Austrália, onde o narrador pergunta: quem realmente vai se beneficiar com o mercado de carbono?

Crédito de carbono é um negócio que ninguém entende direito como funciona, mas todo mundo sabe que é “do bem”, porque é isso que vem sendo martelado diariamente na cabeça das pessoas.

Na real, pode acabar funcionando como uma bolsa-família que manterá pobres os países pobres, ao impedir seu desenvolvimento, enquanto os países ricos ficarão mais ricos, em um processo de congelamento do poder global. Como naquela antiga canção de Chico Science e Nação Zumbi, o de cima sobe e o de baixo desce.

(Mas anotem: pelo andar da carruagem, em breve criticar esse modelo muy amigo será considerado uma ameaça à democracia, e quem o fizer será censurado e desqualificado como um inimigo da natureza e um fascista.)

Segundo o Le Monde, o acordo já foi concluído e está prestes a ser assinado. Em troca de um pagamento que pode chegar a 50 bilhões de dólares, a empresa Blue Carbon LCC terá direitos exclusivos sobre 10% do território de um país durante 30 anos.

Parece muito dinheiro? Talvez seja uma ninharia, comparada com os resultados da potencial exploração “do bem”, durante três décadas, dos minérios e outros recursos naturais da região, conciliada com projetos de conservação e reflorestamento.

Na nova economia global, a função dos países pobres será vender créditos de carbono para países ricos, enquanto a sua própria população morre de fome?

A Blue Carbon foi criada há menos de um ano por um sheik árabe, Ahmed Dalmook Al Maktoum, membro da família real. A mesma empresa já está negociando acordos semelhantes com a Zâmbia e a Tanzânia, outros países miseráveis na África cuja função na nova economia global, ao que tudo indica, será vender créditos de carbono para os países ricos, enquanto a sua população morre de fome.

Dubai, aliás, será a cidade anfitriã, em novembro e dezembro próximos, da COP 28, a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, onde o acordo deve ser anunciado.

O Brasil, por sua vez, é candidato a sediar, em Belém, a COP 30, em 2025. Quem sabe até lá também teremos algum acordo parecido para anunciar sobre a Amazônia, sob o aplauso dos países ricos que destruíram suas florestas, mas hoje posam como heróis da defesa do meio-ambiente?

Para os Emirados Árabes, o acordo com a Libéria é um negócio da China; para o pobre país africano, nem tanto. Aliás, ninguém garante que esse dinheiro vai chegar nos mais pobres, considerando a corrupção endêmica na região.

Por essas e outras o acordo vem causando “inquietações profundas” na sociedade local. Por exemplo, somente uma parte do território concedido tem hoje o estatuto de área protegida; o restante é povoado, o que gera incerteza sobre o futuro dessas pessoas.

Aliás, uma rápida pesquisa no Google mostra outros riscos potenciais do acordo. Já em 2010 foi publicada a seguinte reportagem no site Mongabay – Notícias Ambientais para Informar e Transformar: “Libéria sofre suspeitas de fraude em projetos florestais de carbono”. A fraude, na época, envolvia uma empresa britânica.

Oficialmente, a ideia é até bonita: transformar a floresta em um santuário intocado, uma espécie de museu da natureza (intocado pelos liberianos, diga-se de passagem, porque será difícil ter controle sobre o que fará a Blue Carbon da região). Mas acreditar que não há interesses econômicos e geopolíticos envolvidos nesse negócio é de uma ingenuidade atroz.

Por isso mesmo, uma comissão liberiana independente de vigilância da floresta vem criticando o governo por fechar um negócio que terá consequências imprevisíveis para a população local “privada de decidir sobre a utilização das suas terras” e quebrando leis, já que “a sua propriedade é em muitos casos comunitária e não estatal”.

Qualquer semelhança com a Amazônia pode não ser mera coincidência.

Segundo o igualmente insuspeito Aldo Rebelo, que não é exatamente alguém de direita, e outros depoentes da CPI das ONGs atualmente em curso no Congresso (CPI que vem sendo estranhamente ignorada pela grande mídia), hoje são as ONGs – generosamente financiadas por países ricos – quem manda em várias partes da Amazônia, decidindo quem até quem pode entrar ou não.

Se antigamente a esquerda-raiz berrava a plenos pulmões “A Amazônia é nossa!”, hoje militantes progressistas gritam: "O crédito de carbono é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo!"

Em breve a Amazônia poderá não ser tão nossa assim. E ainda teremos que achar isso bonito.

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