Em 1966, dois anos após o golpe militar que ele próprio apoiou, Carlos Lacerda propôs aos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart a formação de uma frente de oposição à ditadura. Ainda que com motivações diferentes, os três políticos mais importantes do país na época, todos cassados, superaram suas diferenças na chamada “Frente Ampla”, que pregava o retorno à normalidade democrática. A iniciativa não deu certo.
Curiosamente, os três morreriam em um intervalo de nove meses, dez anos depois: Juscelino em um acidente de trânsito, em agosto de 1976 ; Jango de ataque cardíaco, no exílio, em dezembro do mesmo ano; e Lacerda em maio de 1977, de infecção, após se internar para fazer exames de rotina.
Ou não. Na novela “O passado promete”, o jornalista e escritor Guilherme Fiúza imagina o que teria acontecido se Lacerda tivesse fugido da clínica onde estava internado para, da clandestinidade, interferir no processo de redemocratização do país – e modificar a História que ele não viveu. Uma ficção política da melhor qualidade, que faz o leitor refletir sobre o que é a partir do que poderia ter sido.
Nesta entrevista, Guilherme Fiuza - que, aliás, continua com seus perfis suspensos nas redes sociais - fala sobre o processo de criação do livro e analisa a onda de autoritarismo velado (ou não tão velado) que se abate sobre o Brasil, em plena (ou não tão plena) democracia.
- Millôr Fernandes disse que o Brasil tem um enorme passado pela frente, e décadas depois o passado continua prometendo. O destino do Brasil é reincidir eternamente nos mesmos erros?
GUILHERME FIUZA: “O passado promete” não tem a ver com a repetição de erros históricos. É sobre como poderia ter sido se assim não fosse. A História tem seus lapsos. A morte repentina de Tancredo Neves, por exemplo, me parece um lapso histórico. Toda uma configuração evolutiva foi sepultada junto com ele, não havia peça de reposição. É interessante imaginar como o Brasil teria caminhado sem a tragédia da perda de Tancredo. É um pouco o exercício que faço no livro, mas a partir de um “lapso” anterior.
- Quais são os mitos em torno da redemocratização do Brasil nos anos 80 que ajudam a entender a política do Brasil de hoje?
FIUZA: Acho que o maior deles é a ideia de que a oposição a uma ditadura que já passou justifica quaisquer abusos no presente - incluindo autoritarismo velado. Essa ideia é inconfessável, mas é real.
- Fale sobre o processo de criação do romance. Como surgiu a ideia? Exigiu muita pesquisa?
FIUZA: Na maioria dos meus livros, sempre extraí novelas da vida real. Dessa vez resolvi fazer o contrário: inserir uma novela na vida real. Por isso foi um trabalho bem mais centrado na criação de personagens e situações entrelaçadas à história real do que de pesquisa. O personagem do Tio Benjamim, por exemplo – um velho bêbado da Baixada Fluminense – é uma referência ao Beijo, irmão de Getúlio Vargas, grande adversário de Carlos Lacerda. Por vias tortas, Tio Benjamim se torna um interlocutor improvável de Lacerda, levando a história do Brasil para um percurso menos grandiloquente e mais chapliniano.
- Por que você escolheu salvar Lacerda, e não Jango ou Juscelino?
FIUZA: Porque é dos três o personagem que acho mais interessante. Os três foram políticos bastante retóricos, cada um no seu trilho ideológico. Mas acho que o Lacerda mostrou um pragmatismo sem paralelo quando assumiu um governo, o da Guanabara. Foi uma gestão de tal forma frutífera que nem parece obra de um homem que se destacava até ali como um tribuno, como o prodígio dos duelos verbais. E posso estar enganado, mas acho que na criação da Frente Ampla, Lacerda estava em uma fase de maior maturidade política, inclusive alertando para o jogo enganoso da dualidade “direita x esquerda”, alerta com o qual me identifico e considero atualíssimo.
- Que comparação você faria entre a Frente Ampla criada por Carlos Lacerda, João Goulart e Juscelino Kubitschek para enfrentar a ditadura militar na década de 1960 e a Frente Ampla formada para derrotar Bolsonaro na eleição de 2022?
FIUZA: Nenhuma. O governo Bolsonaro já começou com um ajuntamento de forças reacionárias decididas a impedi-lo de governar. Isso não foi uma frente ampla por democracia. Pessoalmente, eu desconfiava muito do projeto Bolsonaro. Achava caricato, com potencial sectário. Mas me permiti observar o início da gestão. E ali ficou claro, com Paulo Guedes e Rogério Marinho aprovando, junto com o Parlamento, a tão desejada Reforma da Previdência, que havia problemas, mas não se tratava apenas de uma caricatura autoritária. Infelizmente o golpismo da imprensa e da elite fisiológica se concentrou em tentar chamar de fascismo tudo que não fosse adesão à sabotagem.
- Virou uma frase feita dizer que a democracia está em risco. Quais são os riscos reais que a democracia enfrenta hoje? FIUZA: A epidemia de cinismo. Quando a boa e velha crítica a governos começa a ser demonizada como “narrativa antiestatal” – com a cumplicidade da imprensa – é sinal de que está valendo tudo pelo álibi.
- Você é um crítico da teoria do chamado “teatro das tesouras”. Por quê?
FIUZA: Porque a premissa de que PT e PSDB montaram um plano para se revezarem eternamente no poder é uma mistificação, para não dizer uma bobagem. O PT tentou destruir o PSDB com todas as suas forças na época do Plano Real, investiu pesado na deposição de FHC, mas perdeu e por isso passou quase uma década sem nem chegar perto do poder central. Um partido fisiológico, que vive da sua gula por cargos e verbas, jamais “planejaria” uma abstinência dessas.
Em São Paulo, onde os projetos de redução do Estado se iniciaram com Mário Covas, o PT passou mais de três décadas enxotado da máquina. É muita ingenuidade achar que o partido fez esse “acordo”. As mentes binárias acham que constatar isso é ser “tucano”. O PSDB é outra porcaria de partido, que teve seu final patético com João Dória e Geraldo Alckmin. Mas os devotos dessa teoria do teatro das tesouras acham que nada prestou até que a “direita” chegasse ao poder. Então podem jogar fora o Plano Real e colocar um monte de zeros à esquerda do seu dinheiro.
- A relativização da liberdade de expressão é um fenômeno que afeta não somente o Brasil, mas também a Europa e a América do Norte. A que você atribui essa onda de censura “do bem”?
FIUZA: A tentação de controlar os outros parecia arrefecida após a derrocada dos regimes totalitários do século 20, mas a comunicação total do meio digital reacendeu essa chama no coração de lata dos nerds bilionários, que saíram comprando consciências pelo mundo afora com uma facilidade chocante.
- Nas circunstâncias atuais, dá para acreditar em um futuro promissor? Ou a coisa ainda vai piorar?
FIUZA: Não sou bom de previsões. Acho que o mundo acabou na terceira década do século 21. Existe um nível máximo de indignidade para você continuar chamando isso tudo de civilização. Por outro lado, parece que aqui e ali há reações à indignidade. Talvez possamos dizer que o mundo acabou, mas passa bem.
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