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Liderança na crise: o que Abraham Lincoln pode ensinar a Jair Bolsonaro?
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Curiosidade intelectual, resiliência, inteligência emocional, senso de propósito e habilidade de aprender com os erros foram algumas das características comuns aos quatro presidentes americanos analisados em “Liderança em tempos de crise”, de Doris Kearns Goodwin: Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt, Franklin D.Roosevelt e Lyndon Johnson.

Apesar de terem temperamentos, competências e origens sociais muito diversas – e apesar dos contextos muito diferentes em que governaram – os quatro também compartilharam a circunstância de terem passado por momentos dramáticos, tanto na vida pessoal quanto na vida pública: Lincoln perdeu um filho de 11 anos e sofria de uma depressão que quase o levou ao suicídio; quando jovem, T.Roosevelt perdeu a mãe e a mulher no mesmo dia; F.D.Roosevelt teve poliomielite e ficou com as pernas paralisadas; Johnson amargou derrotas políticas acachapantes na juventude.

Os quatro presidentes representam o melhor da tradição democrática americana. Todos superaram traumas e obstáculos terríveis para liderar os Estados Unidos em momentos decisivos de sua História. Em momentos de crise e desespero, comunicavam sem piedade os fatos à população, mas ao mesmo tempo sabiam lhe dar esperança. Por outro lado, todos cometeram erros graves em seu percurso rumo ao topo, mas demonstraram a capacidade de reconhecê-los e superá-los, no processo de construção de sua identidade pública.

Partindo do exame de suas vidas e carreiras, a autora de “Liderança” pergunta: como a adversidade afeta o desenvolvimento da liderança? A época faz o líder ou o líder modela a sua época? Como um líder consegue infundir significado e senso de propósito moral na vida dos cidadãos? É possível haver liderança sem uma motivação maior que a ambição pessoal, o poder e o dinheiro? E ela conclui que, no caso dos quatro personagens do livro, a chave da liderança esteve na maneira como eles reagiram aos revezes do destino mais importante do que aquilo que aconteceu aos quatro presidentes foi.

O livro de Goodwin – também autora de “Team of Rivals: The political genius of Abraham Lincoln”, biografia que lhe valeu o Prêmio Pulitzer e serviu de base para o filme de Steven Spielberg, ganhador do Oscar de 2012 – se divide em três partes. Na primeira, com foco no aprendizado e nos anos de formação, ela examina a juventude dos quatro políticos, em busca dos primeiros sinais do surgimento da ambição feroz de liderar; na segunda, em pequenos estudos psicológicos, demonstra como eles suportaram perdas e derrotas na construção de suas carreiras; na terceira, que tem elementos de um guia de auto-ajuda, apresenta listas dos princípios que nortearam os quatro presidentes em situações de crise, com base nas crises que administraram e nos seus diferentes estilos de governar. Por fim, um epílogo examina como os quatro presidentes refletiram sobre seus próprios legados, após deixarem o poder, e como seus nomes e reputações entraram para a posteridade.

No caso de Lincoln, Goodwin destaca sua persistência, seu senso de dever, sua capacidade de ouvir e seu autocontrole emocional. Lincoln foi um exemplo do que a autora descreve como “liderança transformacional”: um líder que inspira sua equipe e se deixa inspirar por ela. Paciente e flexível, ele sempre ponderava os argumentos de todas as partes envolvidas em uma questão. Não tinha medo de mudar de ideia. Conseguia gerenciar vários problemas ao mesmo tempo, sem perder a calma. E era um mestre na arte de persuadir, em vez de coagir: uma de suas frases famosas é “Eu destruo meus inimigos quando faço deles meus amigos”. Outra frase de que gosto muito é: “Se eu tivesse oito horas para derrubar uma árvore, passaria seis afiando meu machado”.

Lincoln era um praticante da tolerância e da generosidade. Liderava dando aos comandados a impressão de que estava sendo guiado por eles. Confiava no julgamento de quem estava na linha de frente, dando liberdade para subordinados agirem. Sempre dava o crédito a quem de direito, quando as coisas davam certo, e sempre assumia sua parte da responsabilidade, quando davam errado. Mais que um sinal de sua integridade, isso era também uma estratégia política: ele sabia que o sucesso é melhor quando compartilhado.

Mas sua maior competência foi mesmo não se render às adversidades. Sua história demonstra que os verdadeiros líderes aqueles que se adaptam à realidade, não aqueles que lutam contra ela, ou se deixam derrotar pelas calamidades. Além disso, Lincoln sempre tomou o cuidado de evitar ceder a impulsos autoritários: mesmo tendo a convicção absoluta de estar certo, temia ser percebido como um ditador. Ele sabia, também, que na sua posição era inevitável conviver com sabotadores e gente jogando contra, mas, em vez de se render ao ressentimento ou se sentir paralisado, ele focava nas soluções para cada problema. Como escreve a autora:

“Lincoln jamais esqueceu que, em uma democracia, a força de um líder depende, no fim das contas, da força de seu elo com o povo. Pela manhã, ele separava várias horas para ouvir as necessidades das pessoas comuns que faziam fila em frente a seu escritório. (...) Gentileza, empatia, humor, humildade, paixão e ambição o marcaram desde o início. Mas ele cresceu e se transformou em um líder que se tornou tão poderosamente envolvido com os problemas que destroçavam o país que seu desejo de liderar e sua necessidade de servir se fundiram em uma única e indomável força. Essa força não somente enriqueceu líderes subsequentes como também forneceu ao povo norte-americano um compasso moral para servir de guia”

Mesmo que não reúna conselhos exatamente originais, como manual de instruções para presidentes “Liderança” pode ser útil, sobretudo no contexto de polarização da sociedade em que vivemos.  No caso de Lincoln, Goodwin reuniu 17 lições, ilustradas por episódios vividos pelo presidente – particularmente durante a Guerra Civil, que quase partiu o país em dois, e na batalha pela emancipação dos escravos, finalmente aprovada em 1863. Cada uma dessas lições, listadas abaixo, poderia – ou deveria – servir de exemplo e inspiração ao presidente Jair Bolsonaro na gestão da grave crise provocada pela pandemia do coronavírus:

  1. Reconheça quando políticas fracassadas exigirem mudança de direção.
  2. Reúna informações em primeira mão, faça perguntas.
  3. Encontre tempo e espaço para pensar.
  4. Recorra a todas as possibilidades de compromisso antes de impor o poder executivo unilateral.
  5. Antecipe pontos de vista antagônicos.
  6. Assuma total responsabilidade por uma decisão crucial.
  7. Entenda as necessidades emocionais de cada membro da equipe.
  8. Não permita que ressentimentos passados persistam; transcenda as vendetas. pessoais.
  9. Estabeleça um padrão de respeito mútuo e dignidade; controle a raiva.
  10. Proteja os colegas da culpa.
  11. Mantenha a perspectiva em face tanto do louvor quanto da agressão.
  12. Encontre maneiras de lidar com a pressão.
  13. Mantenha sua palavra.
  14. Saiba quando esperar e quando avançar.
  15. Combine liderança transacional e transformacional.
  16. Seja acessível e fácil de abordar.
  17. Coloque o interesse coletivo acima do autointeresse.

Liderança em tempos de crise, de Doris Kearns Goodwin. Tradução de Alessandra Bonrruquer. Editora Record, 560 pgs. R$ 84,90

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