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Com Bolsonaro aparentemente (no Brasil nunca se sabe) fora do jogo, uma pergunta começa a circular tanto nos bastidores da política quanto nas mesas de bar: por que o sistema quer tanto que Tarcísio de Freitas seja o próximo presidente?
Por “sistema”, entenda-se o conjunto amorfo, mas poderosíssimo, composto por elites econômicas, formadores de opinião, grande mídia, burocracia estatal etc.: é o establishment, que prefere a previsibilidade à ruptura, mesmo quando a ruptura é necessária.
Aos olhos desse sistema, Tarcísio encarna a possibilidade de síntese entre duas demandas contraditórias: manter o país politicamente administrável e oferecer um verniz de mudança que não assuste ninguém.
A imagem de Tarcísio como engenheiro, alguém capaz de arrumar a casa, é sedutora: como um tecnocrata de carreira, habituado às engrenagens mais técnicas do funcionamento do Estado, ele não chega com a pretensão de romper estruturas, mas de fazê-las funcionar – sem representar uma ameaça ao poder econômico.
Basta olhar quem financia os eventos em que Tarcísio é convidado: BTG, Itaú, XP, Santander, Bradesco, Safra. Em 2024, ele foi o político mais assediado em jantares fechados de CEOs em São Paulo. Curiosamente, doações de empresários que hoje jantam com Tarcísio financiaram institutos de pesquisa que inflavam a rejeição a Bolsonaro e minimizavam os escândalos do PT.
O motivo é simples: Tarcísio defende abertamente a agenda que o mercado quer ver implementada — reforma administrativa, privatizações, teto de gastos “de verdade”, redução de ministérios e cargos comissionados etc.
Por sua vez, desde 2023, os principais jornais e revistas do país vêm publicando capas e perfis extremamente favoráveis a Tarcísio. O tom é sempre o mesmo: “o governador que faz”, “o gestor que entrega”, “o nome novo da direita”. Mesmo quando ele erra, a repercussão é mínima. A grande mídia batia panela contra o “perigo autoritário”, enquanto o STF agia como protagonista político. Tudo alinhado.
O apoio a Tarcísio não vem de um amor repentino pela eficiência. É estratégia. A grande mídia brasileira precisa de um candidato de oposição viável que não seja “radical” demais, para não assustar anunciantes e acionistas.
Ao mesmo tempo, Tarcísio dialoga com o eleitor conservador, antipetista, descrente da política, mas também cansado da polarização. É um eleitorado numeroso, que não vota no PT de jeito nenhum. O sistema percebeu que, sem acenar para esse público, nenhuma pacificação será possível.
Em um momento no qual o Brasil vive um clima de estagnação econômica crônica — com a inflação oficial sendo contida à base de artifícios, baixo crescimento e perda de competitividade internacional — o sistema busca alguém que prometa racionalidade. Tarcísio não assusta o mercado, não flerta com populismo fiscal e se apresenta como gestor pragmático.
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O PT, por sua vez, esgotou sua capacidade de expansão, consequência da aposta na polarização como estratégia de sobrevivência. Mas Lula tem 80 anos, enfrenta dificuldades e não tem um herdeiro natural. O sistema sabe que não há terreno fértil para uma sucessão tranquila no campo governista.
Por outro lado, a direita órfã de Bolsonaro também encontra dificuldades para escolher um sucessor competitivo. Nesse cenário, Tarcísio aparece como um candidato suficientemente conservador para capturar o eleitor antipetista e suficientemente moderado para não assustar a elite econômica e a parcela progressista da classe média urbana.
Tarcísio ocupa hoje o cargo político mais relevante depois da presidência. É um posto que tradicionalmente forma presidenciáveis: quem governa São Paulo administra um orçamento colossal e enfrenta desafios de escala continental. Se faz um bom governo, ganha vitrine nacional.
Até agora, Tarcísio conseguiu manter a imagem de administrador competente. Herdou um estado quebrado financeiramente e, em menos de três anos, colocou as contas no azul, privatizou a Sabesp, desindexou o IPVA, atraiu R$ 300 bilhões em investimentos e entregou obras de infraestrutura que estavam paradas há décadas.
Espertamente, Tarcísio não ataca instituições, não cria crises desnecessárias e foge de conflitos com o Judiciário e a grande mídia. Essa, por assim dizer, compostura interessa a quem detém o poder real. Para o sistema, a estabilidade sempre foi prioridade para manter o jogo funcionando nos mesmos circuitos de sempre. Tarcísio não contesta as regras desse jogo, apenas promete jogá-lo com mais competência.
Por fim, Tarcísio não assusta culturalmente. Não é um radical de costumes, não desperta pânico na classe artística, não alimenta polêmicas identitárias, não se posiciona como cruzado moral, não convoca guerras culturais. Essa neutralidade agrada a um sistema naturalmente avesso a um presidente que desperte paixões, como Bolsonaro ou mesmo Lula.
Vale lembrar que o mesmo sistema que hoje abraça Tarcísio apoiou Lula em 2022. Não se tratou de paixão ideológica, e sim de cálculo frio: naquele momento, o establishment estava em pânico existencial com a possibilidade de reeleição de Bolsonaro. Lula, por outro lado, era o mal conhecido.
Mas todo mundo sabia o roteiro do que viria: governo de coalizão fisiológica, ministérios loteados, Haddad na Fazenda tentando acalmar o mercado, Alckmin de vice como fiador e um Congresso amaciado com a liberação de emendas parlamentares milionárias.
Enfim, o retorno ao presidencialismo de coalizão clássico, caro e corrupto, mas previsível. O sistema aceitou pagar esse preço para evitar o que enxergavam como um imprevisível e arriscado segundo mandato de Bolsonaro.
Ou seja: Lula foi eleito em 2022 não apesar do sistema, mas com seu apoio decisivo. Foi o candidato da contenção, não da ruptura. Três anos depois, em um cenário de estagnação na economia e fisiologismo na política, o sistema já prepara o próximo ciclo, com Tarcísio como o “gestor da direita responsável”. É o mesmo jogo, só muda o ungido da vez.
No fundo, o establishment brasileiro despreza Lula, mas também teme a volta do bolsonarismo-raiz. Tarcísio resolve essa equação. É a candidatura moderada (ou domesticada?) com que o sistema sempre sonhou. E quando o sistema quer muito uma coisa… geralmente consegue.





