Livros no Brasil são caros. São caros porque as tiragens médias são pequenas. As tiragens são pequenas porque há pouca demanda. Há pouca demanda porque o hábito da leitura é pouquíssimo difundido no Brasil. Ainda menos difundido é o hábito de comprar livros em livrarias. Por quê? Por que os livros são caros.
Como editoras são negócios, elas precisam ter lucro para funcionar. Isto é, a receita precisa ser maior que os custos. Do ponto de vista da editora, seria ótimo imprimir tiragens maiores, porque os ganhos de escala permitiriam vender os livros a um preço menor. Mas não adianta imprimir exemplares demais, porque eles ficarão encalhados no depósito, o que também tem um custo.
Como em qualquer negócio em uma economia de mercado, a curva da oferta precisa encontrar a curva da demanda. Há um preço “ideal”, acima e abaixo do qual a receita diminui. Se a editora aumenta esse preço, a demanda diminui, e vice-versa. Mas pode ser interessante aumentar o preço, quando a demanda é superior à prevista, ou dar descontos, quando ela é inferior.
Além disso, quando livrarias precisam fazer caixa ou abrir espaço nos estoques, elas oferecem descontos. Com o desconto, o livro se torna acessível a mais compradores. As vendas aumentam. Ainda que o preço unitário seja menor, a receita total de livrarias e editoras pode crescer, porque é melhor vender 500 livros a R$ 50 do que 100 livros a R$ 100.
Tudo isso é óbvio, qualquer calouro de Economia entende. Aliás nem precisa ser calouro de Economia: basta conhecer as operações básicas da matemática, ter meia dúzia de neurônios e um pouco de bom senso.
Qualquer pessoa entende – menos, aparentemente, o legislador. Porque li que está avançando no Senado o Projeto de Lei 49/2015, agora apelidado de Lei Cortez (em homenagem ao livreiro José Xavier Cortez, falecido em 2021). De autoria de uma senadora do PT, o PL 49 foi merecidamente arquivado e assim ficou nas legislaturas passadas, até ser ressuscitado por outra senadora petista.
Pois bem, o que propõe o PL 49? Instituir a “política nacional de fixação do preço do livro”, isto é, estabelecer regras para a comercialização e difusão, definindo infrações e penalidades.
Diz a ementa do PL: “Todo livro receberá da editora precificação única por prazo de 1 ano, a partir de seu lançamento ou importação. Constituem infrações praticar tratamento não isonômico aos comerciantes intermediários e a oferta de livros a preços inferiores ao estabelecido.”
Ou seja, está proibido dar desconto. O que já estava ruim vai piorar. “Ah, mas na França tem uma lei parecida...” Meu amigo, na França as pessoas leem, e lá existem milhares de pequenas livrarias centenárias que fazem parte do patrimônio cultural do país. Estamos no Brasil, não tem como comparar.
Além do mais, essas comparações com outros países são inúteis, porque sempre haverá exemplos para confirmar qualquer teoria: basta dizer que, no Reino Unido, uma lei similar, já revogada, provocou o aumento de 80% do preço dos livros. Por que no Brasil não seria assim?
Trata-se, na prática, da imposição de um tabelamento de preços por parte do Estado. Lembra os fracassados planos econômicos do Governo Sarney
O Projeto de Lei 49/2015 simplesmente proíbe que redes com a Amazon – que já responde por cerca de 50% das vendas de livros no país – vendam os lançamentos com desconto.
Mas não é só isso. O PL também impede que as editoras alterem o preço do livro conforme as variações da demanda. Ora, isso acontece o tempo inteiro: as vendas de um um livro surpreendem, fazendo com que se imprimam nos meses seguintes novas e maiores tiragens, permitindo a diminuição do preço. Agora não será mais possível fazer isso: o preço de capa terá que ser o mesmo, por 12 meses, com, no máximo, 10% de desconto.
Aliás, segundo entendi, o preço do livro digital terá que ser o mesmo do livro físico – o que seria outra medida estúpida, que revela total ignorância do sentido da digitalização e de rudimentos do mercado.
Trata-se, na prática, do bom e velho tabelamento, de um controle de preços por parte do Estado. Lembra os fracassados planos econômicos do Governo José Sarney: a diferença é que, na época, o tabelamento era para impedir que os produtos fossem vendidos por um preço superior ao da tabela; agora é o contrário: o tabelamento é para impedir que os preços diminuam. É surreal e assustador.
O PL parte de uma premissa falsa. O legislador parece imaginar que o mercado é algo estático, como se o comportamento do consumidor não variasse, não fosse dinâmico.
O legislador parece pensar assim: se hoje um determinado livro vende 10 mil exemplares, se a gente proibir dar desconto todos sairão ganhando, porque as vendas continuarão as mesmas, mas as receitas das livrarias e editoras aumentarão. Certo? Errado.
Além disso, sem ter a vantagem do desconto na Amazon, o leitor buscará as livrarias físicas. Errado mais uma vez.
Como o ministro da Fazenda, aliás recentemente repreendido por gostar de ler, eu sou um comprador contumaz de livros. Mas o legislador está redondamente enganado. Porque muita gente – eu, inclusive – só se dispõe a comprar determinados livros quando eles estão com desconto.
Proibir o desconto não me fará sair de casa para comprar a mesma quantidade de livros que compro hoje, por um preço maior, em lojas físicas: proibir o desconto só me fará comprar menos livros.
Mas vamos ao primeiro artigo do Projeto de Lei:
Art. 1º. - Esta lei institui a política nacional de fixação do preço do Livro em todos os seus formatos, tendo por objetivos e diretrizes:
I – Fomentar o livro como bem cultural;
II – Garantir que sua oferta seja acessível ao grande público pelo estímulo à leitura, pluralidade de pontos de venda e maior disponibilidade do bem em todo o território nacional;
III – Garantir igualdade de condições ao empreendedor livreiro;
IV - Estabelecer a fixação de preço de venda do livro ao consumidor final, visando assegurar ampla oferta de exemplares e pontos de venda, fixando preço único para sua comercialização;
V – Permitir o exercício da livre concorrência e coibir o abuso de poder econômico, dominação de mercado, aumento arbitrário de lucros e a proteção ao consumidor.
Pergunto: de que forma impedir que o leitor tenha acesso a livros mais baratos estimulará a leitura? Acreditar que o problema do empreendedor livreiro são os descontos oferecidos pela Amazon é apenas uma ilusão. Também é ilusão achar que a fixação de um preço único assegurará "ampla oferta de exemplares e pontos de venda".
Políticas de controle de preços não são apenas inócuas: podem agradar no curto prazo, mas logo se tornam prejudiciais para todos
Não é assim que funciona.
Na prática, com o tabelamento serão vendidos ainda menos livros do que hoje. As vendas na Amazon despencarão. Com vendas menores, as tiragens também terão que ser reduzidas. Com tiragens menores, os preços aumentarão. Sairá mais caro para as pequenas livrarias colocar os livros nas prateleiras. Todos perdem.
Outro risco previsível: para se proteger de um eventual aumento da inflação, a editora fixará preços de capa mais altos do que faria se não existisse a lei. Ainda assim, diante de uma crise econômica, a proibição de correções de preço ao longo de 12 meses pode simplesmente inviabilizar o negócio, levando ao fechamento de editoras e livrarias.
Isso sem falar nos mirabolantes mecanismos de controle que precisarão ser criados: o PL prevê uma complicada burocracia de fiscalização, além de obrigações e multas para os agentes do mercado editorial que violarem o tabelamento.
Seguem mais alguns trechos do PL. Sintomaticamente, o espaço para infrações e multas (Artigo 13) é maior do que aquele dedicado a ações de “difusão do livro” (Artigo 11):
Art. 3°. – Todo livro, sob edição nacional ou importada, receberá da editora precificação única por prazo determinado de 1 (um) ano, a partir de seu lançamento ou importação.
Art. 4°. – A pessoa física ou jurídica que compor, editar, reeditar ou importar livros destinados à sua comercialização, deverá fixar para eles, por meio eletrônico e público, o preço de venda ao consumidor final, que será referido como preço de capa (...)
§ 3º O preço de cada obra deverá constar de lista pública eletrônica, de emissão das editoras e/ou importadoras, devendo servir de referência para os livreiros e revendedores em todo território nacional.
§ 4º Sob pena de multa, a editora ou a importadora deverão manter os registros e controles necessários para comprovação do disposto no parágrafo anterior.
§ 5º A edição privada ou autônoma, exigirá do autor a disponibilização eletrônica ao público de dados, informações e preço da obra ao consumidor final, de conformidade com esta lei.
§ 6º. O editor e o importador deverão atribuir, por sua rede de vendas ou distribuição, o catálogo ou lista de preços dos livros de seu fundo editorial.
§ 7º. Será de obrigação do editor a divulgação dos preços ao público de todo seu catálogo editorial disponível em sua unidade ou rede.
§ 8º. Idêntica obrigação terá o livreiro que comercialize livros impressos ou eletrônicos pela rede mundial de computadores. (...)
Art.13 (...)
§ 2°. – A editora e o comerciante intermediário responderão solidariamente pela infração com a pena equivalente a 100 vezes o preço fixado do livro por exemplar, multiplicado pelo número de exemplares da correspondente edição.
§ 3°. - Em caso de reincidência em período inferior a 12 meses, a editora e o comerciante intermediário responderão solidariamente pela infração com a pena equivalente 150 vezes o preço fixado do livro ou livros, multiplicado pelo número de exemplares da correspondente edição;
§ 4°. - Em caso de nova reincidência em período inferior a 12 meses, contada da primeira infração, a editora e o comerciante intermediário responderão solidariamente pela infração 6 com a pena equivalente a 200 vezes o preço fixado do livro ou livros, multiplicado pelo número de exemplares da correspondente edição;
§ 5°. - Em caso de uma quarta reincidência em período inferior a 12 meses, contada da primeira infração, a editora e o comerciante intermediário responderão solidariamente pela infração com a pena equivalente a 250 vezes o preço fixado do livro, multiplicado pelo número de exemplares da correspondente edição;
§ 6°. - Novas reincidências, a partir da quinta, em período inferior a 12 meses, sofrerão a aplicação de multa com o valor igual ao estabelecido no inciso IV acima, aumentando 20% (vinte por cento) em cada nova ocorrência.
Trata-se, em suma, de mais um Projeto de Lei cujos efeitos práticos serão exatamente o oposto dos previstos. Isso em um mercado que já vai de mal a pior.
Segundo esta pesquisa, em um ano as vendas caíram 15,7%. Em setembro de 2023, a Rede Saraiva fechou uma centena de lojas, demitindo milhares de funcionários; e a tradicional Livraria Cultura está em recuperação judicial e já recebeu ordem de despejo.
A História demonstra que políticas de controle de preços não são apenas inócuas: podem agradar no curto prazo, mas logo se tornam prejudiciais para empresários e consumidores.
Pontualmente, pode até acontecer de algum pequeno livreiro de um município específico se beneficiar se o PL 49 se tornar lei. Mas, no final das contas, todos perderão.
É espantoso que, nessa altura do campeonato, ainda existam projetos de lei assim, é espantoso que projetos de lei assim ainda avancem. O Brasil cansa.
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