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Luciano Trigo

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Guerra ao terror

Thomas Hobbes e Max Weber vão à favela

As favelas dominadas pelo tráfico no Rio de Janeiro são um retrato contemporâneo trágico do que Thomas Hobbes chamou, em “Leviatã”. (Foto: ChatGPT, com orientações do colunista)

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As favelas dominadas pelo tráfico no Rio de Janeiro são um retrato contemporâneo trágico do que Thomas Hobbes chamou, em “Leviatã” (1651), de “estado de natureza” – uma situação na qual não existe autoridade soberana capaz de garantir a segurança, a ordem e a previsibilidade da vida social.

É um mundo onde o homem é o lobo do homem, onde a força e o medo substituem a lei, e onde a vida costuma ser "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”. A ausência de um soberano legítimo leva à anarquia e à violência ilimitada. A solução, para Hobbes, é a transferência voluntária do direito ao uso da força para um Leviatã onipotente, capaz de impor a paz.

A atual crise de segurança – que não é nova, mas escalou dramaticamente em 2025 - ilustra o colapso do monopólio do uso legítimo da força: sem a presença do Estado, surge o ambiente perfeito para o crescimento do crime organizado e a erosão das normas mais rudimentares de convívio social.

No Rio de Janeiro de 2025, a descrição do estado de natureza ecoa nas comunidades controladas por facções criminosas. Lá o conceito hobbesiano não é mera abstração filosófica: ele se materializa na vida cotidiana de milhões de pessoas. Rompido o contrato social, os moradores vivem em um equilíbrio precário de terror, no qual a lealdade a uma facção garante a proteção contra rivais, mas à custa da submissão total às normas ditadas pelo tráfico.

O trabalhador pobre que vive sob o domínio de facções não tem garantias básicas de segurança, nem acesso efetivo à Justiça e a serviços públicos. Sua relação com o Estado é precária e intermitente. A consequência é a regressão a uma forma de vida primitiva, com regras arbitrárias que mudam conforme o humor do chefe local. Mas o castigo para qualquer violação dessas regras pode ser imediato e letal.

A presença ostensiva de homens armados com fuzis nas vielas e becos, os tribunais do crime com poder de vida e morte, a cooptação de jovens pra o crime e a extorsão cotidiana de moradores e comerciantes são sintomas do colapso do Estado, incapaz de cumprir sua parte no pacto social – o acordo racional pelo qual os indivíduos renunciam a parte de sua liberdade em troca da proteção e outras garantias.

No início do século 20, o sociólogo Max Weber refinou a ideia de Hobbes. Em "Política como vocação" (1919), ele definiu o Estado moderno como a entidade que detém o monopólio legítimo da violência física em um território determinado. Mas Weber não caracteriza o Estado meramente como monopolizador da força, e sim como uma autoridade burocrática e racional legítima, porque está ancorada no consentimento da sociedade.

Criminalizar a polícia enquanto se romantiza o crime é inverter a lógica civilizatória: é tratar o uso legítimo da força como abuso, e o abuso da força criminosa como resistência

Ou seja, a força usada pelo Estado é justificada porque deriva de uma ordem jurídica reconhecida por todos, isto é, de um consenso social sobre quem tem o direito de recorrer à coerção em nome do bem comum. Quando o Estado renuncia a esse papel, por covardia, omissão ou cálculo político, ele cede espaço a forças ilegítimas que impõem suas próprias leis.

Weber lembrava que o Estado moderno é inseparável da legitimidade de sua força. E Hobbes advertia que, sem autoridade soberana, o homem está condenado a regressar à selvageria. Estar ciente disso é crucial para compreender o colapso da autoridade estatal nas favelas do Rio.

Mas, quando jornalistas e políticos relativizam as ações das facções criminosas, pintando-as como “resistência” ou como resultado inevitável da desigualdade social, eles estão contribuindo, conscientemente ou não, para a erosão do princípio da legitimidade da força estatal.

Acadêmicos de esquerda e ONGs focadas com os direitos humanos dos bandidos ignoram o sofrimento real da população. Chamam operações policiais de "genocídio", sabendo que as facções matam cinco vezes mais que a polícia. Essa relativização é cínica, porque equipara o Estado, imperfeito mas legítimo, ao crime organizado, que escraviza comunidades inteiras.

Trata-se de uma inversão moral típica de sociedades em decadência: a autoridade legítima é acusada de opressão, enquanto os verdadeiros opressores são tratados como vítimas do sistema.

Essa narrativa, ainda que bem-intencionada em alguns casos, fomenta o descrédito das instituições e encoraja a expansão dos poderes paralelos. Ao demonizar a polícia e vitimizar o criminoso, essa retórica destrói o próprio fundamento do pacto social que Hobbes e Weber consideraram indispensável à vida civilizada.

Criminalizar a polícia enquanto se romantiza o crime é inverter a lógica civilizatória. É tratar o uso legítimo da força como abuso, e o abuso da força criminosa como expressão de resistência cultural. A polícia não deve ser vista como inimiga do povo, mas como o braço visível do pacto civilizatório. Sem ela, a lei se torna letra morta, e o território é devorado por senhores da guerra. Criticar a polícia por atuar contra o tráfico é tomar partido do estado de natureza contra o Estado de Direito.

O Estado tem o dever de retomar o controle dos territórios e de garantir a seus cidadãos o direito de viver sem medo. Isso não significa ignorar abusos individuais ou desprezar o valor das vidas envolvidas, mas compreender que a alternativa à ação estatal não é a paz — é a barbárie.

Quando o Estado hesita, ele envia uma mensagem de fraqueza. E, como ensinou Hobbes, a fraqueza do soberano é o convite ao caos. A ausência de poder legítimo não gera harmonia, mas sim o reinado do mais forte, do mais cruel e do mais armado.

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