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Vergonha na cara
| Foto: Reprodução Instagram

A lembrança é muito vaga: eu tinha talvez 4 ou 5 anos. Acusei uma de minhas irmãs de ter se apropriado de alguma coisa minha. Um brinquedo? Uma bola? Um álbum de figurinhas? Uma caixa de lápis de cor, talvez. Pode ter sido uma caixa de lápis de cor. É, acho que foi.

O fato é que, apesar de ocupadíssimo como todo menino de 4 ou 5 anos, perdi uma manhã inteira procurando o objeto desaparecido, sem sucesso. E, por algum motivo, me convenci de que tinha sido minha irmã a responsável pelo sumiço. Implicância entre crianças?

O contexto e os detalhes me escapam. Só lembro que, usando da minha prerrogativa de filho caçula, eu fui reclamar com a minha mãe – que, injustamente, repreendeu minha irmã e perguntou a ela onde estavam os lápis de cor. Ela não sabia.

Dias depois encontrei a caixa enfurnada em uma das minhas gavetas. Eu mesmo a tinha escondido e não me lembrava. A vergonha que senti foi tão grande que me lembro do sentimento até hoje. E ainda sinto uma fisgada de culpa na consciência.

Eu me apressei a pedir desculpas. E, para tentar me redimir do erro, ofereci os lápis à minha irmã – que, aumentando ainda mais a minha humilhação, recusou o presente. Ela e minha mãe me perdoaram, mas eu não me perdoei. Freud deve ter alguma explicação para isso.

Ao longo da vida testemunhei algumas situações nas quais uma pessoa foi acusada, por engano, de uma coisa que não fez. Falo de situações envolvendo pessoas honestas.

Em todas elas, quando a verdade foi restabelecida, o acusador reconheceu seu erro e, sentindo-se a última das criaturas, pediu desculpas publicamente. É o mínimo que se pode fazer em uma situação assim. É algo que todo pai e toda mãe ensinam aos filhos (ou, pelo menos, ensinavam, não sei se ainda é assim).

Porque isto se chama vergonha na cara. Não é uma questão legal, é uma questão moral. Qualquer brasileiro minimamente honesto, por mais humilde que seja, entende. O sentimento de vergonha diante de um erro cometido, ainda que involuntariamente, é algo que nos torna humanos.

Uma sociedade na qual as pessoas não sentem vergonha e não se desculpam pelos seus erros não tem a menor possibilidade de dar certo

Todos estão sujeitos a errar, mas aqueles que são incapazes de sentir vergonha e de pedir desculpas erram em dobro. Uma sociedade na qual as pessoas não sentem vergonha e não se desculpam pelos seus erros não tem a menor possibilidade de dar certo.

Como já escreveu o meu mestre Deonísio da Silva: “É indispensável que os brasileiros que perderam a vergonha voltem a tê-la. E voltem a tê-la na cara!”

É famosa, aliás, a proposta de Constituição feita pelo historiador Capistrano de Abreu (1853-1927). A nossa Carta Magna, segundo o historiador, deveria ter apenas dois artigos: “Art. 1º Todo brasileiro é obrigado a ter vergonha na cara. Art. 2º Revogam-se as disposições em contrário”.

Pois bem, vamos imaginar uma situação hipotética. Um casal é acusado de ter furtado móveis, centenas de móveis, da casa onde morou.

A denúncia, gravíssima, tem grande repercussão: toda a grande mídia dá destaque ao assunto, sem qualquer apuração ou checagem, e sem qualquer preocupação com a imagem dos acusados.

Mais de um ano depois, a mesma grande mídia noticia, vejam só, que todos os móveis foram encontrados. Sem o menor constrangimento e com a maior cara-de-pau, e sem fazer qualquer mea culpa.

Ninguém pede desculpas: nem quem acusou, nem quem deu farta divulgação à denúncia. Ao contrário, uns e outros minimizam a própria falha e tentam dar um jeito de responsabilizar o casal injustamente acusado pela acusação injustamente sofrida.

E ainda aproveitam para acusar mais uma vez as vítimas, agora de tentar explorar politicamente o assunto. Qualquer brasileiro honesto, ao se deparar com pessoas capazes de agir assim, perguntaria: “Vocês não têm vergonha?”

Mas estou falando de uma situação hipotética, é claro. Ainda bem que coisas assim não acontecem no Brasil.

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